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O Casamento e a Revolução

A significação da obra de Nélson Rodrigues, como uma das mais representativas coisificações da cultura brasileira, já se havia manifestado plenamente, fosse, em especial através do palco (onde, de longe, é o nosso maior teatrólogo), ou mediante aquelas crônicas de A Vida Como Ela É, e, agora posteriormente, com a série À Sombra das Chuteiras Imortais.

Um primitivo altamente civilizado – esta pode ser uma chave de definição para tentar captar o que, nêle, se coaduna em material de estilo e visão do mundo. E, já deixando de lado a obra teatral, onde peças como Vestido de Noiva ou o recente Tôda Nudez Será Castigada, oferecem dimensões antológicas, não há como deixar de reconhecer, no que escreve, as características do prosador raro – original. Deboche? Obscenidade? Pornografia? Essas espécies de indagações são ingênuas (ou, quando muito, hipócritas) diante da informação estética. Nem mesmo, por outro lado, também nêle, chega-se a notar a pureza do amoralismo. Ao contrário, as criações de Nélson Rodrigues levam quase à idéia da purgação de um moralista. E, por isso, certamente, ainda é um cristão; não invoca a abertura vivencial, intelectual, do neopaganismo. Mas, quando falamos em moralista – urge ressalvar – referimo-nos a uma determinada formação inoculada pela mora, num sentido dinâmico, e, não, na imoralidade que caracteriza o moralismo convencional (essa espécie de moralismo que gerou uma portaria do Ministério da Justiça, proibindo O Casamento).

Pois existe, em Nélson Rodrigues, ao contrário do que poderia aparentar a alguns, a característica do escritor frio, analista – que está distante vivencialmente de seus entrechos e de seus personagens. Nêle, vida e arte não se confundem; por isso, comporta o paradoxo de ser um cristão que aprecia (e mesmo estimula) o transe dionísico.

Estilisticamente a sua prosa demonstrou aquela sabedoria intuitiva de captar, em ritmo escorreito, na coloração do coloquial, e também transfigurar funcionalmente, as valências precisas da linguagem-ambiente. O seu escrever é um fluir que, inclusive, atravessa serenamente quase todos os obstáculos do mau-gôsto genial de algumas letras dos nossos maiores compositores de música popular da velha guarda. Há vários exemplos clássicos do mau-gôsto em Nélson Rodrigues, alguns já incorporados ao vocabulário popular: "o óbvio ululante", o "poente de folhinha", "o fauno de tapête". Aqui, como uma elocrubação não primitiva, isto é, traduz crítica e autocrítica; no primeiro caso, ao próprio mau-gôsto, no segundo, como um refluxo semântico, contaminando intencionalmente o ataque ao convencional.

Também o adjetivo. Talvez nenhum escritor brasileiro use tão bem o adjetivo como êle. Não no sentido flaubertiano do mot juste. Mas seja na distorção expressionista, seja na demarrage funcional ao descrever uma situação, localizar uma cena, com as vibrações do inesperado cunhado qualquer tonus, dramático ou cômico, patético ou ridículo.

Enfim, o diálogo, o seu recurso máximo em eficácia: secura, autenticidade, invenção rítmica - diálogo que, principalmente, invoca a grande fôrça motora do sucesso de suas peças.

* * *

A incursão de Nelson Rodrigues no romance, com O Casamento, é devastadora para aquêles que circulam em faixa semelhante. Tôdas aquelas suas qualidades acima apontadas, reemergem magistralmente orquestradas. De ponta em ponta, um romance antológico, seja pela leveza da prosa, pelo ritmo escorrente e despretensioso, pela rica hilaridade que desperta, pelo sentido patético que, apesar de tudo, apesar dos aparentes contrastes, sabe conferir, ao captar o cotidiano com aquelas suas colorações de estilo e dar-lhe uma densidade existencial que reflete a da média e pequena burguesia carioca. Também outra vez - outra recorrênca de suas qualidades já evidenciadas no palco - funcionam os nomes que confere aos personagens que, normalmente (e isto é um aspecto invulgar de Nélson Rodrigues) já criticam os personagens aos quais se reportam. Sabino Uchoa Maranhão, Glorinha, dr. Camarinha, Maria Eudóxia. Não se trata de analisar o nome em si, mas a sua aplicação calculada a determinados personagens, em determinadas contingências, aos quais se colam como signos, seja de pieguice, ingenuidade, irresponsabilidade, depravação.

O palavreado virulento, as cenas de obscenidade ou depravação, o deboche (o fabuloso deboche de Nélson Rodrigues) estão presentes com todo o vigor instigante em O Casamento. E - repetindo novamente - não traduzem imoralidade. Constituem o enfocamento natural do autor de captar a realidade, de delinear essa espécie de saga carioca da classe média de mentalidade suburbana. E, nesse ponto, o autor é pràticamente amoral detecta, não toma partido, não procura impôr mensagem.

Passagens antológicas: todo o desespêro final de Sabino com a descrição das cenas na delegacia; a cena em que, acendendo à mulher cega e leprosa, que sorri como seu consentimento, o marido, Xavier, finge que também se despe para o ato sexual, puxa o revólver e atira no meio do sorriso; tôdas as passagens iniciais, na recepção, com o diálogo entre Sabino e o ginecologista.

O Casamento (vale o radicalismo), logo abaixo do Grande Sertão: Veredas, é talvez o maior romance escrito no Brasil nos últimos vinte anos. Existiu Machado de Assis, existiu Manuel Antônio de Almeida, o Serafim Ponte Grande e As Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade; Angústia e Vidas Sêcas, de Graciliano Ramos; alguma coisa do Macunaíma de Mário de Andrade; a expressividade do asco sartriano, em O Ventre, de Carlos Heitor Cony, espera-se pela prosa de Haroldo de Campos, com apenas alguns trechos publicados. E está ai, presente O Casamento, uma afirmação rara, numa época em que o cinema torna cada vez mais difícil escrever romances.

* * *

E é exatamente num período assim chamado de revolucionário, que se proíbe O Casamento. Não é preciso recomendar que seja lido cada vez mais, pois a proibição, como um rastilho de pólvora, ainda mais abriu o interêsse público pelo livro. Mesmo porque, em seu terreno de ação, O Casamento é bem mais revolucionário do que o Govêrno que o proíbe.

O Casamento (o livro e, não a instituição) fica e não parece, pelo menos enquanto fôr revigorado pela agressão à obra de arte. Quanto ao casamento propriamente dito, Deus o livre de se tiver de ser mantido por portarias, como aquela do Ministério da Justiça. O Casamento e a Revolução.

Correio da Manhã
23/10/1966

 
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Correio da Manhã 18/08/1962

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