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Pedras de Toque

O princípio mallarmaico de que a poesia é feita com palavras e, não, com idéias é hoje lugar comum para qualquer pessoa com menos de noventa anos de idade e medianamente informada a respeito do assunto. Mas existem as distorções muito comuns ou desfocadamente engajadas a respeito do uso da tal palavra poética ou mesmo do discurso poético. Do moralismo ao marxismo (e, êste, na bôca de alguns amadores ululantes, também se transforma num moralismo) procura-se “enquadrar”o poeta, que, no fim de contas, homoludens por excelência, deve ter o significado geral de sua obra, isto é, aquêle que emana além do close-reading, apreendido na faixa geral do humanismo e, não, naquelas, restritas, de sentimentos ou doutrinas setorizadas. É lícito, por exemplo – e tomando os dois maiores poetas participantes do século – fazer um ensaio a respeito do pensamento e influências políticas de Ezra Pound e Maiakóvski, em função, inclusive, de tornar mais explícito o sentido e as intenções das respectivas obras. Mas o que não é lícito e traduz caolhismo crítico é julgar os seus trabalhos poéticos pela medida subjetiva (do julgador) de seus pensamentos políticos.
A análise objetiva, cerrada, de um texto criativo, guiada por aquela consciência da hegemonia da palavra (e tôdas as suas implicações formativas) sôbre a da ideia, exige muito daquilo que Pound já pregava, isto é, o método comparativo, a técnica do isolamento funcional de filamentos de texto, análogo ao do biologista que leva as suas lâminas para o microscópio. Pound fêz isso com grande sucesso num volume básico para o iniciante do estudo de poesia a sério, o ABC of Reading, livrinho, por sinal, dentro da especificidade da análise literária, muito mais importante do que tôdas as incursões acadêmicas de um Lukács ou de alguns discípulos ou marxistas pseudo-ortodoxos, cuja atividade no ramo lembra, em muito, a renitência do culto ao maracujá de gaveta.
Dentro dêsse trabalho de isolar momentos mais essenciais ou intensos de poesia, está aquela preocupação também poundiana (e, aqui, retomada com êxito pelo saudoso Mário Faustino, em sua página Poesia-Experiência) para a descoberta e a divulgação sistemática dos touchstones – pedras de toque – às vêzes uma só quadra, ou mesmo um verso ou uma mera imagem, que desvendam mais poesia (no sentido de encantamento, precisão, instigação) do que o poema inteiro que, por seu turno, às vêzes abafa êsses filamentos antológicos. Exemplo de pedras de toque são muitos e escorrem pelo aleatório da memória: “a bracelet of brigh hair about the bone” (John Donne); “de griegas naves una blanca selva” (Lope de Vega); “donner un sens plus pur aux mots de la tribun” (Mallarmé); “chefa di claritá l’aer tremare” (Guido Cavalcanti); “tiro nas lebres de vidro do invisível” (João Cabral de Melo Neto); “sols sui qui sai lo sobrafan quem sortz, al cor d’amor sofren per sobramar” (Arnaut Daniel); ou, enfim, do próprio Pound: “agaynst Pity lifted her wall:/ Pitty causeth the forests to fail/ Pity slayeth my nymphs/ Pity spareth so many an evil thing”. Assim, diante de fragmentos como êsses, armado do conhecimento do instrumental informativo da linguagem (inclusive também se socorrendo daquela divisão tripartida de Pound, sôbre os principais aspectos do poema: melopéia, quando impera o som, fanopéia, quando impera a imagem, logopéia, o jôgo da ambigüidade significante, “a dança do intelecto entre palavras), o crítico do observador lúdico, poderá chegar mais depressa à essência do poema, do que tomando como ponto de partida as abstrações conteudísticas ou os carinhos temáticos puramente pessoais, quando, em ambos os casos, pode-se estar forjando uma oscilação falsa entre uma ótica idiótica ou neurótica. Embora sabedor de que a pedra de toque também funciona obrigatoriamente dentro do contexto formativo integral do poema, como fatia de uma estrutura, êle conseguirá, a partir do detalhe instigante, chegar ao todo, ao conjunto, e afiar o ôlhouvido de seu receptor poético. Verá, por exemplo, retornando aos fragmentos acima transcritos, a predominância de uma imagem dinâmica em Lope de Vega, que balança branca como as velas dos barcos na sua memória; a perfeita conjunção entre armação sonora (assonâncias consonantais em BBs) e a poderosa imagem desfechada pelo maior poeta metafísico. John Donne (“um bracelete de cabelos brilhantes em tôrno do esqueleto”) e a precisão lapidar do alexandrino mallarmaico funcionando como suporte de um verso conceitual (“dar um sentido mais puro às palavras da tribo”); o extraordinário dinamismo com a idéia de movimento permanente veiculado pela imagem de João Cabral os versos agudos, mormente pelos iis, do emocionante grito pagão de Pound, em seu Canto XXX (piedade as florestas atrofia, piedade matou minhas ninfas, piedade poupa tanta coisa vil – aqui, trecho da tradução de Augusto e Haroldo de Campos & Pignatari); enfim, não é preciso saber provençal para descerrar a poesia pura da música de il miglior fabbro (Dante Dixit), Arnault Daniel, o campeão provençal do trobar clus (só eu ou quem sabe o sobrafã que sopra no coração do amor, sofre por sobramar”- aqui, numa versão ligeira, livre, ao léu).
Há também os exemplos de condensações estimulantes, onde em trechos de um dado poema, um significado, além do significado geral da peça, incrustado no corpo poemático, emite a sua mensagem paralela. Toma-se, por acaso, um dos grandes poemas de Décio Pignatari, como O Jogral e a Prostituta Negra, e, dentro do fluxo verbal dissonante, solavancado por imagens ricas, metáforas complexas, separa-se na lâmina êste trecho: “a legião dos ofendidos demanda/ tuas pernas em M/ silenciosa moenda do crepúsculo”. Aqui mais importante do que o instigante achado visual das “pernas em M” ou da metáfora do último verso do trecho (a meretriz como uma “silenciosa moenda do crepúsculo”), a palavra “ofendidos” é que imanta todo o trecho de uma significação poética abrangente, a remeter a um conteúdo geral: a chusma social dos machos alienados, para os quais o amor e uma moral fácil (como a prostituta) faz resumir as suas vivências neste binarismo hipócrita: aos sábados, o bordel; aos domingos, a missa. Mas também, no sentido geral do poema, que traduz a luta do poeta para engrandecer, com seu ofício, a própria poesia (que é a prostituta negra), aquela imagem da corrida às pernas abertas remete imediatamente a nossa imaginação para a chusma dos maus poetas, que, com suas facilidades e sem esfôrço de criar, prostituem a poesia.
O poema, é claro, deve ser encarado sempre como um todo, porém nada impede que, a serviço do básico – aquilo entendido por poesia – faça-se a dissecação dos seus momentos mais intensos ou originais. Assim também é que existem grandes poetas ou poetas menos importantes, cuja falta de rigor, cujo incontido esbanjamento verbal, faz inúmeros e notáveis touchstones boiarem num mar de redundâncias. É o caso de Jorge Lima, em cuja obra principal, A Invenção de Orfeu, no meio de um discursório fluente, de lances de mau-gôsto, emergem momentos antológicos, como o sonêto da garupa da vaca, ou aquêle outro, magistral, “a estepe e a noite se deitaram juntas”. Veja-se o caso de Cassiano Ricardo, que tem uma obra enorme e talvez não possua um poema sequer, completo em si mesmo, isto é, uno em sua estesia. Mas Cassiano é um autor de interêsse (além de sempre interessado na evolução de poesia) porque saltitam touchstones em sua obra, ora aqui, ora acolá. Aliás, existe um poema completo de CR: a Serenata Sintética, de 1947; já era, sem querer, um poema concreto. Existem a demonstrar que a poesia é mais importante do que os poetas em si, que, ao fazerem o poema, devem por isso mesmo, dêles se desligarem.
A verdadeira luta do criador – com maior ou menor consciência de que seu campo de ação envolve um instumental técnico – é aquela pela originalidade. E estamos falando mesmo na área da poesia discursiva tradicional – lírica, épica ou satírica – sem nos remetermos às empostações das vanguardas que sacudiram neste século o próprio conceito de poesia: futurismo, dadaísmo, surrealismo, concretismo. A mensagem estética – que se mede a posteriori, quantitativamente por mais intuitivo que seja o autor de uma determinada obra em exame – sempre pressupõe um mínimo de originalidade. Sem essa condição, ela reflete o mero lugar-comum.
Hoje em dia, o trabalho de pessoas como Norbert Wiener, Max Bense, Abraham Moles ou Colin Cherry, ajudaram em muito a forjar o que se denomina de teoria da informação e que veio a afetar, em paralelo com a criação das vanguardas, tôda uma sistemática da moderna crítica de texto. Esta, hoje, sem tomar conhecimento disso ou de estudos afins, não menos importantes, como a semiótica de Peirce, a estética de Susanne Langer ou a lingüística de Roman Jackobson, ficará no tocante ao seu ofício, “out of key with his time”, como reza a expressão de Pound no poema Mauberley.
Assim é com a irradiação dos conceitos de originalidade, informação, mensagens, redundâncias. Uma determinada obra, em exame, equivale a uma mensagem. Mensagem, de acôrdo com o que disserta Abraham Moles, em sua Teoria da Informação e da Percepção Estética, constitui uma forma mais ou menos complexa, que é medida através da quantidade de informação nela contida. Para Moles, a informação, por sua vez, consiste numa quantidade, essencialmente diversa da idéia de significação – ela é uma medida da complexidade das estruturas pertinentes à mensagem. Daí, a originalidade da mensagem (ou da obra) se mede pela maior ou menor quantidade de informação nela contida e em relação com o índice de redundância. E o que é redundância? É o que, numa mensagem, vem “dito em excesso” (Moles). Mas se a redundância pode ser classificada como “um desperdício de símbolos acarretado por uma codificação defeituosa”, a partir do ponto de vista do “rendimento da transmissão”, ela também, em paralelo, fornece uma garantia contra possíveis erros da mesma transmissão, porque permite a apreensão da mensagem a partir do conhecimento que, quem vai recebê-la, possui, a priori, a respeito da estrutura da linguagem na qual se opera a comunicação.
A redundância, em relação à originalidade, funciona dentro daquele binômio consagrado signo-suporte. Ora, como nos poemas tradicionais, de estrutura discursiva, essa mesma estrutura era amiúde redundante, devido à sua fixação nas convenções formais da linguagem escrita e/ou falada, o estar poético se reflete sempre, com mais intensidade, no detalhe, em elementos isolados, variando a fôrça de sua permanência durante a leitura na maior síntese, contenção, concisão do poema. E – daí – o salto luminoso das pedras de toque, isto é, a concentração estética propiciada pela originalidade. A redundância é, portanto, o suporte necessário da originalidade. Necessário porque, na linguagem discursiva, ao nível da língua, isto é, da fala corrente, a originalidade integral importa fatalmente na inteligibilidade total.
Por isso também que o método da teoria da informação aplica-se, funcionalmente, a determinados campos – mesmo no da assimilação estética – já que nem sequer se destina especificamente a mudar a fala corrente numa dada sociedade, que brota e se transforma com a fenomenologia do uso. Ela apenas ajuda a sistematizar descobertas de estruturas consagradas pelo uso ou então atua no sentido de criar ou aperfeiçoar mensagens em campos específicos de comunicação.
No caso da poesia concreta, vai como uma luva. Se as pedras de toque, com referência à poesia concreta, funcionam num sentido amplo para demonstrar a ratio formativa da linguagem diante de um poema concreto, acabado, a especulação dos touchstones é irrelevante, porque cada poema, como produto acabado, se pretende êle próprio uma pedra de toque, já que deve obrigatòriamente impor sempre uma estrutura original, como o nível de redundância reduzido ao máximo ou apenas à materialidade dos elementos. Daí também por que, ao inverter o consagrado processo de De Saussure, isto é, tendo o significado idiomático como meio, ela é uma espécie de metapoesia – além daquela que se concretiza através dos recursos formativos da linguagem usual. Trata-se de uma poesia artificial, como já explicou Max Bense em notável artigo, cujo processo não se opera naquela faixa de entendimento de arte como expressão. Em lugar de pedras de toque, fragmentárias, pedras de toque estruturais.

Correio da Manhã
12/03/1967

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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