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A era do texto

O problema do texto, em si mesmo, tornou-se uma realidade mais aguda para os consideranda estéticos, pode-se dizer, a partir de pouco tempo. Foi o desfechar de inúmeros processos não mecânicos de informação e de comunicação, propiciados pela industrialização na era eletrônica, em paralelo com a decorrência dos diversos movimentos de vanguarda, a colocar em crise permanente o conceito tradicional de arte, que levaram a essa contingência especulativa. O filósofo Max Bense, por exemplo, fartou-se de examinar a questão - possui mesmo o seu livro denominado A Teoria do Texto.
A própria definição de texto veio a ganhar uma condicionante mais concreta, no momento em que dentro dela, já não se separa ou se isola a concepção de área semântica ou referencial, dos materiais que são as suportes dos signos da expressão ou informação, quer dizer, na hora em que essa definição toma em conta, no tocante à estrutura, tanto os elementos (sempre virtuais), como os materiais (sempre reais) - de acôrdo com a contraposição, hoje clássica, consumada por Susanne Langer, no seu An Introduction to Symbolic Logic. Assim êle (o texto) obriga permanentemente a ser captado, em sua estrutura, segundo essas determinantes, seja um texto intencionalmente referencial à outra coisa que paira além dêle, seja, pode-se, dizer auto-referencial, em sua gratuidade essencial - que, quanto maior o índice, mais a aproxima da concepção de obra de arte pura. Na ocorrência desta segunda hipótese, não existem considerações mais a fazer a respeito da necessidade de uma atitude objetiva integral com relação à estrutura em exame. Na primeira hipótese, é natural meditar sôbre a ligação entre linguagem e realidade. Pois, de acôrdo com o material e o sistema de signos utilizado, a partir dêle, existem gradações evidentes de distância entre o texto e o seu objeto referencial, existente além, isto é, o pretexto, uma extra-estrutura quanto à materialidade. Tomemos o exemplo da cidade de Ouro Prêto, como a coisa referida. Se determinada pessoa realiza um filme documentário sôbre aquela cidade histórica, o texto (o filme) estará muito mais próximo dela, da realidade, em sua transparência, do que se uma outra pessoa, com a mesma intenção documental, escrevesse (fôsse do modo mais realístico possível) a respeito de idêntico assunto. A distância entre as palavras e Ouro Prêto é muito maior do que a distância entre o filme e Ouro Prêto. A realidade próxima do objeto referido, no segundo caso, esmaga qualquer pretensão idêntica do escritor ou do repórter – a barreira das palavras, escritas ou orais, constitui, ela própria, o Ieitmotiv para o exame mais acurado do texto em si. Já é literatura, com ou sem aspas.
Questão não menos intensa, com relação a isso, se verifica na antiga distinção literária entre prosa e poesia. A velha estética, hoje formalista, se satisfazia em separar o que era escrito em versos, como poesia, e o restante, como prosa. A partir do simbolismo, principalmente, com os poemas em prosa, e Lautrèamont etc., as coisas começaram a se complicar. E, no século atual, depois de vários ismos fecundos dos movimentos de vanguarda, a existência do verso como condição sine qua non a fim de se denotar a presença do poeta se transformou numa balela acadêmica (e, nem assim, de tôdas as academias). A poesia sofreu mesmo essa evolução em direção da percepção e compreensão da existência da questão do texto, quando deixou de ser menos concebida, de maneira primordial, como fruto de inspiração subjetiva, do que como resultado do trabalho com a palavra, em suma com a linguagem. Quando Mallarmé diz que a poesia não é feita com idéias e, sim, com palavras está conferindo a primazia para o texto, como passou a ser modernamente entendido.
Hoje, as teorias do texto tendem a eliminar as diferenças entre poesia e prosa, ou torná-las uma superficialidade formal a alimentar tão-somente a etiquêta dos gêneros. Mas de que modo se colocar diante do problema, pelo menos para fins metodológicos, se o fato em si não impede que inúmeros escritores sintam a necessidade de escrever romances (prosa), ou contos, novelas & etc, se o ensaio ou o relato documental ou noticioso, nem traduzem apenas a livre especulação de escrever, porém ainda necessidades dentro do complexo do mundo da informação e comunicação? Em nossa opinião, a par da atitude básica, de que o poeta habitualmente procura trabalhar ao nível da linguagem, enquanto o prosador, ao nível da lingua, aferido o mínimo múltiplo comum estrutural das obras, a diferença é de grau. Ou, talvez melhor dizendo, de transparência do texto. Ao ler poesia, o leitor sempre se detém mais nas palavras do que ao ler prosa. Assim sendo, a prosa pura é aquela que ,se afasta no máximo da poética; reciprocamente, a poesia pura é aquela onde mais se impõe a materialidade dos signos e suas relações. Na prosa, pura, o leitor não pára nas palavras - a transparência do texto é de tal ordem, dentro de sua função referente, com uma determinada área semântica, que, inclusive, ela propõe, quando funcional em sua elaboração, a rapidez da leitura.
Um exemplo genérico de prosa pura (dentro do objetivo ficção, dentro da especificidade do autor ser, em essência, o narrador) se caracteriza no folhetim. Mas o folhetim não seria um gênero menor, um gênero popular, segundo quaisquer das duas tendências, a artepurista ou a dos grandes conteúdos e mensagens? Até que não. Há exceções. Um dos melhores exemplos de prosa pura é o imenso Memórias de um Médico, de Alexandre Dumas (pai). Divide-se em cinco partes, quase que como romances isolados em si: Joseph Balsamo - Le Collier de la Reine - Ange Pitou - La Comtêsse de Charny - Le Chevalier du Maison Rouge; Desde o início, o relato da chegada de Balsamo (anos depois, Caliogstro, nome pelo qual ficou mais famoso) à beira do Monte Trovão, por onde se reuniria a seita dos iluministas, que planeja, no âmbito internacional, as revoluções contra o regime da realeza, dá uma idéia do poder da prosa de Dumas, em sua simplicidade, naquela transparência. Memórias de um Médico, por outro lado, não deixa de ser uma obra estruturada conscientemente dentro da dialética ficção x documentário: enquanto joga com seus personagens, intrigas e acontecimentos, naquela faixa histórica que vai desde o fim do reinado de Luiz XV até a morte de Maria Antonieta, na guilhotina, o autor fornece dados, relatos secos e até transcreve documentos (por exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem) paralelos ao entrecho. Fatia de história mesclada com o contexto da estória. Coisas semelhantes aconteciam nessa fase do romance, quando o romancista (sem a consagração de especialidades ou ciências como a psicologia, a sociologia, a antropologia, etc) podia e desempenhava mesmo o papel de psicólogo, sociólogo ou antropólogo, de acôrdo com a observação adequada do crítico Oliveira Bastos. Assim é que, por exemplo, Victor Hugo, em Notre-Dame de Paris, interrompe em dado instante a sua trama para, num capítulo inteiro, per fazer um instigante ensaio a respeito da menor variedade de formas na arquitetura, provocada pelo advento da invenção da imprensa.
A transparência da prosa pura de Memórias de um Médico que transforma a obra num clássico é até independente na temporalidade. Isso porque o contexto básico de seus elementos é, ainda hoje, uma constante: de um lado, o documento (et pour cause), de outro, a ficção, sem compromissos de coloraturas estilísticas de escola ou de parti-pris com visadas, teorias - sociológicas, políticas, psicológicas - sempre, mais cedo ou mais tarde, em superação pelo roer do tempo. A narrativa em si, quer dizer o complexo de sentimentos e acontecimentos, gira em tôdas as épocas: está em Balzac, que ficou superado mais facilmente pelo seu realismo, aqui entre nós, hoje, em Nelson Rodrigues, por exemplo, ou em russos como Dostoiévski ou Tolstói. O problema é não confundir cultura com a estática da erudição e notar que, por exemplo, para não ficarmos no mestre Dumas (sempre o pai; não o filho), o Ponson Du Terrail, de O Juramento dos Homens Vermelhos é mais legível do que, talvez, todo o Chateaubriand. Este último, em nível da evidência, pode ser mais importante para um trabalho de pesquisa histórica; seu vôo foi mais alto no espaço, menos horizontal no tempo.
Uma surpreendente demonstração de prosa pura e eficaz é o recente livro Pan América, de José Agripino de Paula, onde o autor faz a sua epopéia (como êle o chama) americana, narrada na primeira pessoa e usando atôres de cinema ou figuras famosas como personagens (Marilyn Monroe, John Wayne, Joe Di Maggio). Aqui, uma das características estilísticas a conduzir para a depuração do texto reside no emprego sistemático de orações iniciadas com a colocação do sujeito logo seguido do predicado. A secura e a falta de preconceitos em distorcer as descrições, descrever o aberante em todos os sentidos, o grandiloquente, o erótico, o fescenino, o grotesco, propiciam uma transfiguração alegórica - mas tudo isso é obtido sem os meios chamados poéticos - líricos ou dramáticos. Donde se conclui que o realismo descritivo não é condição sine qua non para o despojamento do texto referencial, do texto para, ou sôbre.
Se a prosa impura é aquela onde nos detemos nas palavras, marcamos um ritmo ao seu pêso e relações, o modêlo mais elevado é James Joyce ou, no ápice, Finnegans Wake. Ou também, aqui no Brasil, Guimarães Rosa, que, aliás, reaparece reforçando sua posição de maior "prosador" brasileiro, com Tutaméia (terceiras estórias). Aqui, no tocante à valorização, não importa a classificação de prosa impura. A hegemonia de Rosa; ou a de Joyce, na prosa do século XX, repousa na originalidade e na estrutura do texto, captado em si, sem nos atermos à divisão clássica de gêneros. Guimarães Rosa, acreditamos, poderia ser também, no entanto, voltando atrás, um prosador puro excepcional, já que, além da opção pelo primado da palavra (poética), se revela um notável fabulista. É só lembrar, ao acaso, nas Primeiras Estórias, aquela do Famigerado, onde, a par das especulações morfológicas com a palavra-titulo, vigora, de maneira plenamente isomórfica, aquela narrativa do sujeito que viajou a fim de se informar sob o significado da palavra.
Numa época em que a análise de texto, para vários efeitos, se submete a métodos matemáticos, cibernéticos e estatísticos, evidente que o conceito velho de literatura, com a tradicional abertura ao subjetivismo, ficou caduco. Há de, pelo menos, ser considerada a condicionante para uma nova subjetividade – de quem lê, de quem escreve ou fala.

Correio da Manhã
06/08/1967

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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