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Heitor: prazer do samba

Desaparece mais um dos grande da velha guarda: Heitor dos Prazeres – sambista e pintor. O samba também nasceu para ele naquelas famosas reuniões realizadas na casa de Tia Ciata, no começo deste século. Aos sete anos de idade, já brincava com o cavaquinho e tornou-se expert do instrumento.
Não deixou registrado um grande número de composições, como a maioria dos sambistas da “primeira linha” (título de um dos seus sambas, gravado na Brunswick, com o Grupo Gente do Morro e Benedicto Lacerda), cantando e tocando a flauta e onde, naquela primeira linha, são citados compositores – “e o Caninha/ e o Donga e o Pixinguinha/ são todos camaradinhas/ igualmente o Sinhô”, além de Ary Barroso, José Francisco de Freitas ou cantores como Mario Reis e Chico Viola (Francisco Alves). Mas há nível inventico, arroubos melódicos, enfim, aquele appeal que transporta faixas da composição ao nível da vox populi. E existe mesmo a acusação que fez contra Sinhô de lhe haver furtado a autoria de dois dos maiores sambas atribuídos àquele compositor – Gosto Que Me Enrosco (interpretação magistral de Mario Reis), cuja primeira versão, ligeiramente diferente, foi gravada por Francisco Alves, sob o título de Casino Maxixe (1926) e Ora Vejam Só (também gravado por Francisco Alves, na outra face do Casino Maxixe, e por Mário Reis anos mais tarde, num album da Continental dedicado a Sinhô – J. B. da Silva). Heitor dos Prazeres sustentou essa acusação até a morte, havendo ditto que, na época, interpelado por ele o mesmo Sinhô alegara que apanhara as melodias no ar, como um passarinho. Daí, surgiu uma breve polêmica entre os dois sambistas e, enquanto Sinhô compunha Segura o Boi, Heitor dos Prazeres soltava o Olha Ele, Cuidado (“olha ele, cuidado/ ele com aquela conversa é danado/ olha ele, cuidado/ que aquele homem é danado”). Dois anos depois, escreveu outro, com relação ao affaire, O Rei dos Meus Sambas (“eu lhe direi com franqueza/ tu demonstras franqueza/ tenho razão de viver descontente/ és conhecido por bamba/ sendo rei dos meus sambas”). Mas, colocando Sinhô, um ano depois, na “primeira linha” dos sambistas, parecia ficar implícito que Heitor, apesar de tudo, reconhecia-lhe o justo valor.
Aliás, na outra face daquela gravação Brunswick do samba Primeira Linha, aparece, também cantada por Benedicto Lacerda à frente do Grupo Gente do Morro, um dos maiores sambas de Heitor dos Prazeres, Meus Pecados: “viver da forma que eu vivo/ com você, amargurado/ estou pagando meus pecados/ porque dizem: obrigado”, com o grande flautista, depois do estribilho, entrando num solo vocal de alta bossa, “ai, meu Deus, é minha sina/ de mulher me dominar…”
Outra das gravações mais raras e mais autênticas da criatividade de Heitor corresponde a mais um selo dourado da antiga Brunswick, onde o grupo organizado pore le, denominado Grupo Prazeres, com o canto de P. de Oliveira, apresenta, de um lado, a embolada Tia Chimba, e do outro, o fabuloso samba Vou Te Abandonar, com um coro notável em seu arrebatamento uníssono a entoar “eu vivo, eu vivo”, dando a abertura para o futuro desse elemento do samba, especialmente carnavalesco, do lamento em conjunto. Da mesma maneira, excelente, rara e figurando no primeiro plano entre suas canções, é a gravação Victor de Eu Vou Comprar, cuja outra face espelha o importante No Morro de São Carlos, de Hervê Cordovil e Orestes Barbosa. Tanto essa, como a composição do pintor-sambista, são interpretadas por Moreira da Silva (naquela época com o Antônio incluído no nome de profissional), acompanhado pelos Diabos do Céu. Eu Vou Comprar, também praticamente esquecido, constitui um dos pontos altos de Heitor: “eu vou comprar, eu vou comprar/ uma casinha em Bento Ribeiro pra você morar/ e você, mulher, é que vai gostar…”
Entre as melhores ou mais famosas composições suas também cabem ser mencionadas, logo de saída, o inesquecível Pierrô Apaixonado (feito em parceria com Noel Rosa: “um pierrô apaixonado/ que vivia só cantando/ por causa de uma colombina/ acabou chorando, acabou chorando”); Mulher de Malandro com a voz de Chico Alves; Vou Dá Um Jeito, lançado por Murilo Caldas, acompanhado pelo Grupo da Guarda Velha; Voltaste ao Teu Lar (“voltaste, ao teu lar antigo/ arrependida do que fizeste comigo…”), lançado por Sílvio Caldas e os Diabos do Céu; Canção do Jornaleiro (para a Casa do Pequeno Jornaleiro); enfim, interpretado pela maestria habital de Mário Reis, em Vai Mesmo, És Falsa ou Não Sei Que Mal Eu Fiz. E um destaque especial, homenagem ao Rio, merece o seu Carioca Boêmio, gravado por Orlando Silva: “eu sou carioca, boêmio e sambista/ meu sangue é de artista/ não posso negar/ vivo alegre, sou contra a tristeza…”
Há pouco, Heitor dos Prazeres realizou um depoimento auto biográfico, gravado em fita pelo Museu da Imagem e do Som. Lá deixou a sua história pessoal , que implica no relato de uma época. Nasceu na Praça Onze, em 23 de setembro de 1898. Aprendeu a profissão do pai: marceneiro. Depois, o cavaquinho, Tia Ciata, Pixinguinha, Donga, Sinhô e outros criadores. Tocava em festas e começava a compor. Veia a fama, vieram as gravações. Em 1937, inicia efetivamente a sua outra faixa criativa: pintor. Participou da criação de várias escolas de samba, no tempo onde o samba, de fato, marcava as escolas com autenticidade, antes de se terem tornado, como hoje, em pirotécnica decorative para o ballet de luxo que estimula o facilitário turístico.
Heitor, na pintura e na música, foi arte popular séria, sem nada do primitivismo ou ingenuidade cerebral da moda – o prazer de criar, ao olhoouvido.
Heitor dos Prazeres – composições: O Limoeiro, Limão; Adeus, Oculo; Meus Pecados; Primeira Linha; Tia Chimba; Vou te Abandonar; Vou Dá Um Jeito; Voltaste ao Teu Lar; Eu Vou Comprar; Olha Ele, Cuidado; Deixaste Meu Lar; O Rei dos Meus Sambas; Mulher de Malandro; Pierrô Apaixonado; Estás Farta de Falar da Minha Vida; Canção do Jornaleiro; Lá em Mangueira; Sou Eu Quem Dou as Ordens; És Feliz; Tu Já Foste Boa; Vai Mesmo; Criança Louca; És Falsa; Carioca Boêmio; Não Sei Que Mal Eu Fiz; Ié-Ié-Ié Já Foi Candomblé.

Correio da Manhã
05/10/1966

 
Vogeler: resposta do tempo
Correio da Manhã 19/11/1964

Orestes: Poesia e Seresta
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Benedito Lacerda: ou A Flauta de Prata
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Cândido das Neves “Índio”: seresteiro da cidade
Correio da Manhã 06/01/1965

Joubert de Carvalho: o criador de "Maringá"
Correio da Manhã 10/02/1965

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Correio da Manhã 10/03/1965

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Correio da Manhã 31/03/1965

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Correio da Manhã 21/04/1965

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Correio da Manhã 20/05/1965

Heitor: prazer do samba
Correio da Manhã 05/10/1966

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Correio da Manhã 28/07/1967

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Correio da Manhã 10/03/1970

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