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O grande desafio de traduzir Pound

Por Sérgio Augusto

Do tape deck quem dá as boas-vindas é Chico Alves, numa versão de "Uma Hora Contigo", velha canção consagrada no cinema por Maurice Chevalier. Numa estante, a trilha sonora de "Primavera" (Maytime), zênite da Metropereta safra 1937, destaca o casal de rouxinóis Jeanette MacDonald e Nelson Eddy. Na pilha de video-cassetes, uma chapliniana. Se repararmos bem no dono da casa, especialmente no seu penteado, nos sentiremos diante de um contemporâneo de Chico Alves e Carlos Gardel, outro xodó musical do anfitrião. José Lino Grünewald, 54 anos, sempre me pareceu uma figura antiga. É a figura antiga mais moderna que conheço - e já nos conhecemos há 25 anos.
Os paradoxos do seu gosto dividido entre a vanguarda e a tradição ele tira de letra. Venera Guimarães Rosa e Machado de Assis, o Alaim Resnais de "O Ano Passado em Marienbad" e o George Sidney de "Amor a Toda Velocidade” (um musical com Elvis Presler e Ann-Margret), parelha E.E. Cummings e Noel Rosa – e numa ilha deserta não dispensaria uma cópia de "A Felicidade não se Compra" de Frank Capra, nem a discografia completa de Orlando Silva e Mário Reis. Os dois maiores artistas deste século? Chaplin e Marcel Duchamp.
Nossa conversa começa por outra figura paradoxal: Glauber Rocha. Acaba de exumar em seus arquivos uma carta de Glauber enviada de Salvador em 1960, cheia de erros de ortografia e exortações ao embrionário Cinema Novo. Será doada ao museu do cineasta, a quem certa vez fulminou numa polêmica sobre colonialismo cultural, com esta tirada andradina: "Cultura não é macumba pra turista". E já que passou por este assunto, sempre à tona, repisa: "O Brasil tem milhões de realidades. Nós, do eixo Rio-São Paulo, estamos muito mais ligados ao eixo Buenos Aires-Montevidéu do que, ao eixo Salvador-Natal.”

Persona de poeta
Desavenças à parte, Glauber foi um dos incontestáveis discípulos que José Lino seduziu pelo País afora com sua Persona de poeta (concretista) e crítico de cinema, no "Jornal de Letras", no lendário "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil", na revista "Senhor" e nas páginas literárias da "Tribuna da Imprensa" e do "Correio da Manhã". Através dele, muito guarentão solto por aí ouviu falar pela primeira vez de Walter Benjamin, Merleau Ponty, Stanley Kubrick, Ernst Cassirer, Suzanne Langer e Max Bense.
Os primeiros quadros de Volpi que meus olhos acariciaram continuam na parede de sua sala de visitas - a mesma onde, em 1965, jantamos com o cineasta Fritz Lang, de quem se tornou íntimo. Assim como de Bense, Tzvetan Todorov, Abraham Moles e Roman Jakobson, que aliás o considera o melhor tradutor de Mallarmé.
No fundo, perto dos rouxinóis de "Primavera”, as obras de Ezra Pound, outra fixação. Foi para falarmos sobre ele que combinamos o encontro, mais especificamente para falarmos sobre os cento e poucos "Cantos" que o poeta Americano, morto há 15 anos, levou mais de quarenta compondo e José Lino cerca de vinte meses para traduzir. Total: quase mil laudas de trinta linhas.

A grande paixão
Acha que foi bem pago (não revela quanto), mas preferia ter-se beneficiado com uma bolsa como a que o mexicano José Vasquez do Amaral ganhou para traduzir os "Cantos" para o espanhol. Mourejou de madrugada e nos fins-de-semana, pois de segunda à sexta é procurador do Estado. Faria tudo de novo. Pound é a sua verdadeira Penelope.
Tinha 23 anos quando o leu pela primeira vez, estimulado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, por Décio Pignatari e, a partir do ano seguinte, pelo poeta Mário Faustino ("o mais poundiano dos poundianos"). Começou pelos ensaios. Justamente pelo primeiro, "The Spirit of Romance", publicado em 1910, onde surpreendeu Camões saudado como "o Rubens do verso". Na poesia poundiana debutou através de "Personae" (1909). Chegou logo aos "Cantos", mas só ousou traduzir um deles (o 17º) em 1958, para o suplemento literário da "Tribuna da Imprensa". Parecia o mais fácil. Há pouco mais de dez anos; Paulo Mendes Campos também o traduziu.
Não chegam a um palmo as traduções de Pound no Brasil. E se chegam a tanto, devemos ser gratos aos esforços abnegados dos concretistas. Há 29 anos, os irmãos Campos, Faustino, Pignatari e o próprio José Lino publicaram em Lisboa uma coletânea poética de Pound, só lançada aqui em 1983, pela Hucitec. No começo dos anos 60, o MEC perfilhou uma seleta dos “Cantos", organizada pelo mesmo grupo, com o título de "Cantares”.

Referências e citações
O mais útil ensaio poundiano, "O ABC da Literatura", foi editado há tempos pela Cultrix. Com a edição completa dos "Cantos", recém lançada, a Nova Fronteira marca um tento comparável ao da Civilização Brasileira, quando há 22 anos encomendou ao professor Antonio Houassis à tradução de "Ulisses", de James Joyce.
Uma prova de fogo. Em cada canto, mil armadilhas, "Pound violenta a sintaxe, atraves da idéia do ideograma impõe aos versos uma montagem cinematográfica, fragmenta, pula de um assunto para outro com uma desfaçatez tremenda. Mas tudo aquilo tem sentido. O problema maior é identificar todas as citações. O universo referencial dele é incomensurável. Só no primeiro canto “Canto Pisano" há mais de duzentas referências a pessoas, locais e acontecimentos".
Odisseu, Circe - enquanto Pound navega pela Grécia, tudo bem. Napoleão, Confúcio, Sigismundo Malatesta, John Adams, Thomas Jefferson - todos estes as enciclopédias resgistram. Mas o médico particular do poeta, não. Nem Muss ou Ben Muss e Ben são uma só pessoa: Benito Mussolini; um dos primeiros citados nos Cantos Pisanos.

Traição recriativa
Outro figurante nos "Cantos Pisanos" ("os mais difíceis de traduzir") é Possum. Pergunto se o traduziu, não para Gambá, claro mas para T.S. Eliot, o dono do apelido. "Deixei Possum, mesmo. O leitor que descubra sua identidade com a dica da estrofe seguinte, onde Pound cita um dos versos mais conhecidos de Eliot."
José Lino limitou-se a traduzir o inglês, respeitando as referências em outras línguas. Poundianamente, contudo, aventurou-se na traição. "Pound preferia ser um tradittore imaginoso a um traduttore correto e burocrático". Começou cortando a conjunção que abre o primeiro Canto: "And then went down to the ship." Que ficou assim: "Depois com a nau no mar." Ademais, liá momentos em que se viu fazendo a tradução de uma tradução. "Tentei, no primeiro Canto, metrificar quase como se fosse Homero cantando o canto de Pound. Em dado momento, transcrevo um verso do Odorico Mendes (um maranhense que traduziu a "Odisséia") e homenageio os tradutores de Pound, citando uma linha de Amaral e outra de Denis Roche, que o traduziu para o francês".
Amparou-se em todas as fontes a seu dispor, especialmente dicionários, e procurou sempre uma solução pessoal. O "sound slender", do 20.° Canto, por exemplo, traduzido para "som suave" pelos irmãos Campos, virou "tímido soar” na versão de José Lino.
Também guardou distância da tradução espanhola ("bastante fiel mas pouco criativa"). E divertiu-se a valer ao descobrir que todos os tradutores da expressão "put in the cart", presente num dos "Cantos Pisanos”,haviam cometido a mesma mancada. "Put in the cart" não quer dizer colocar alguém ou algo num carro, e sim passar a perna em alguém. Só foi encontrar a tradução correta num livro de expressões idiomáticas de, pasmen, Raymundo Magalhães Junior.

Generosidade e erro
Não adianta provocá-lo com cobranças sobre a adesão de Pound ao fascismo. "Foi um erro de um idealista, de uma pessoa sempre generosa com os outros. Mesmo teso, Pound bancou o mecenas para os que, a seu ver, mereciam um empurrão. Ele ajudou Eliot, Joyce e até Hemingway, cortando os adjetivos que sobravam em sua - prosa". Confere. Pound tinha do mundo uma visão ingenuamente comunitária. Abominava a usura dos banqueiros e as mazelas do capitalismo. Duvidava da eficácia e sobretudo da lisura dos pleitos democráticos. Quem é eleito, dizia, nem sempre tem poder para fazer o que é preciso. No ditador Mussolini vislumbrou a possibilidade de uma mudança radical. Ao contrário do que ocorrera, meses antes, em sua terra natal, foi recebido com carinho na Itália, em 1925, estabelecendo-se em Rapallo. E até reverenciado pessoalmente pelo duce, que, após ter duas páginas dos Cantos então existentes, exclamou: "Ma questo à divertente!." Pound, quem diria, estava carente.
Seu tradutor, de certa forma, também está. De voltar a escrever artigos, como antigamente. Não sobre os filmes que passam e os livros e discos que estão saindo porque decidiu só ver, ler e ouvir o que a sua sensibilidade condenou ao classicismo. No vídeo, as operatas da Metro, Chaplin, "2001". Ir ao cinema virou um suplício. Nem Caetano ouve mais. Cansou. Cansou também de Julia Kristeva e Cia. Ficção, só relaxantes romances policiais. Poesia, exclusivamente a dos infalíveis trovadores: Pound, Mallarmé, Eliot, Auden.
Se pudesse, ressuscitaria, Nélson Rodrigues, para ouvir as suas boutades, como fazia todos os dias, ao vivo e pelo telefone. As que guardou vai pôr no livro que ficou de escrever para a coleção "Encanto Radical", da Brasiliense.


publicado, também, na Tribuna da Imprensa, 1 de junho de 1987

Folha de S.Paulo
16/03/1985

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

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