Cultura nacional às vezes é caso de polícia. E há o caso daquele famoso ensaísta que conhecia todos os livros e todos os autores de todos os mundos e épocas. Até que, um dia, um sujeito chegado das províncias ficou com raiva e inventou obra e autor: “Do comportamento ético dos francos no Pré-Carlovíngio”. Responsável por título tão estuparfúrdio, o sujeito fabricou um Permínio Fávero, com a indicação: pseudônimo de João, o Ruivo. Pois o erudito nacional citou algumas páginas, fez raparos sobre o capítulo dedicado às guerras contra os lombardos, mas elogiou profusamente a documententação e a conclusão final.
Este episódio é dolorosamente verdadeiro. Hoje, os protagonistas são inimigos, mas estão bem situados no exterior, como embaixador e adido cultural respectivamente, lado a lado, e repartem a mesma casa, o mesmo pais, as mesmas honras e as mesmas amantes.
Mas há o reverso da medalha. E este acontecer agora, anteontem, aqui mesmo, nas minhas barbas. Tenho dois vizinhos de trabalho: à direita, o vulto compacto de Otto Maria Carpeaux, as costas de tenista em disponibilidade do poeta José Lino Grünewald. Pois Zé Lino é um emérito fuçador de sebos e livrarias raras, todos os dias desencava um livro surpreendente e importante. E todos os dias não marca tento com Carpeaux. Carpeaux sempre conhece o livro, ao menos de referência ou de citações.
Ontem, Zé Lino fuçou as estantes de uma livraria búlgara, inaugurada recentemente neste Rio de Janeiro. E lá encontrou uma preciosidade: “Páginas Escolhidas”, de Valter Benjamin, um nome pavorosamente ignorado nestas plagas. Na capa do livro, os editores franceses assinalam que é a primeira mostra do crítico alemão em língua latina, “para preencher um grave lacuna universitária, e para colocar em contato com os franceses, o mais novo e importante ensaísta alemão do pós-guerra”.
Zé Lino folheou o livro e encontrou um precioso ensaio sobre o problema das traduções, e caminhava eufórico pela rua, pensando em recomendar o livro ao Décio Pignatari, aos Fratelli Campos (Haroldus eu Augustus) e de repente lembrou-se de Carpeaux.
- Tai, dessa vez vou pegar Carpeaux!
Bom, o sujeito era recente demais para ser intimidade carponiana. E Zé Lino sentiu um gostinho bom da vitória. Abriu a porta, desembrulhou o livro e cheio de mistério foi para as bandas de Otto Maria:
- Carpeaux, aqui está uma raridade. Você conhece Valter Benjamim
Otto Maria Carpeaux estava escrevendo o comentário internacional, e nem levantou a cabeça.
- Conheço. É meu amigo.
Zé Lino encabulou. E nem ousou perguntar mais. Tão logo ficou livre, Carpeaux veio explicar quem era e o que representava Benjamim.
Para quem conhece os bastidores de nossa vida cultural, sabe que há muito tempo, quando ninguém por aqui falava em Kafka, apareceu um erudito europeu por estas plagas que começou a falar num sujeito que escrevia estranho e bonito
Isso foi há alguns anos, já uma geração se passou e agora surge outra – a minha e a do Zé Lino, por exemplo – e a todos devemos um muito a este homem que tem livro e datas e nomes na cabeça, e no peito um coração de criança cada vez mais doce e imenso.
Correio da Manhã
28/09/1963