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Vai e vem

Por Augusto de Campos

Não sei precisar a data do meu primeiro encontro com José Lino Grünewald, que conheci em meados dos anos 50 por intermédio do amigo comum Julio César do Prado Leite. Mas Zelino (assim sempre o chamamos todos) o menciona na carta que iniciou a nossa longa correspondência, em 21 de setembro de 1956, e certamente terá sido nesse ano. Eu, já casado com Lygia, ia muito ao Rio e passei a frequentar a mansão da rua Marquês de Pinedo, em Laranjeiras, onde Zelino morava, e a avistar-me com ele, que então conheceu também Ecila, minha cunhada. Estávamos às vésperas da Exposição Nacional de Arte Concreta, marcada para dezembro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. E Ecila fazia a ponte entre, de um lado, os poetas (Décio Pignatari, Haroldo e eu) e os pintores concretos paulistas e, de outro, o crítico Oliveira Bastos, Ferreira Gullar e os integrantes do Grupo Frente, que praticavam arte abstrato-geométrica, prestigiados por Mário Pedrosa. Zelino logo manifestou uma queda por Ecila e, tímido postulante sem muita esperança, alguns anos de pastor serviu por ela, até finalmente cair em suas graças. O casamento foi quatro anos depois, em 1960. Ficaríamos assim definitivamente entrelaçados, os dois casais, Lygia e eu, Ecila e Zelino.
Eu conhecera Mário Faustino no ano anterior, numa reunião na casa de Pedrosa, onde travamos uma animada discussão em torno dos poemas longos de Ezra Pound (1885-1972) e William Carlos Williams (eu defendendo a supremacia dos
Cantos sobre Patterson, ele o contrário) Em dezembro, me mandara o seu livro, pedindo uma copia de O Rei Menos o Reino e dizendo-me que eu lhe deixara as melhores recordações do nosso encontro, que batizei de "Pound's round", na resposta a ele.
Mas foi através do Zelino, por coincidência seu colega de trabalho na Fundação Getulio Vargas, que Faustino nos convidou a mim, Haroldo e Décio para colaborarmos no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, que então passava por uma grande reformulação. Em sua carta, aquela mesma a que já me referi e que acabou me entregando pessoalmente, José Lino mencionava que Faustino acabara de publicar no Suplemento uma tradução do ensaio de Pound sobre Camões e já anunciara a sua famosa página, "Poesia Experiência". Com a carta, José Lino me entregou um bilhete de Faustino, que assim terminava: "A página está aberta a sua colaboração. Se você tiver alguma coisa – poesia ou artigo - mande logo. E receba um abraço do seu camarada e 'correligionário' Mario Faustino"
Copias dessa correspondência foram enviadas por mim, do Rio, a Haroldo, com vista para o Décio, numa carta de 5 de outubro de 1956, na qual eu escrevia. "José Lino, amigo de J. César, de quem tinha falado a v. certa vez, é o melhor sujeito deste mundo, modesto e honesto. E inteligente, futuro candidato ao ideo (ideograma), talvez. Conhece muito cinema e está formando uma boa cultura poética" Foi, portanto, através de Mario Faustino e dele que passamos a colaborar no célebre suplemento literário.
A minha amizade com Zelino estreitou-se rapidamente, porque ele respondeu desde logo com entusiasmo aos nossos projetos literários e, ainda durante o ano em que se preparava a exposição, me fez ver os seus primeiros tentames poéticos, alguns já concretos ou paraconcretos, como "vértice", "cesse" e "pomba", o primeiro de outubro, os outros dois de dezembro de 1956. Na verdade, ele deixou de participar por muito pouco da nossa mostra e só mesmo porque já estava fechado e equilibrado o número de seus participantes, os três paulistas e os outros três, Ferreira Gullar, Ronaldo Azeredo e Wladimir Dias Pino, que moravam no Rio.
Ronaldo, irmão de Lygia e de Ecila, se integrara ao nosso grupo e já aparecia no terceiro número de nossa revista-livro Noigandres, distribuída na exposição de São Paulo. José Lino, supercarioca como Ronaldo, alinhou-se conosco desde o inicio e veio juntar-se ao grupo, formalmente, na antologia Noigandres (numero 5 da revista) de 1962. Seu primeiro livro de poemas, Um e Dois, com capa pré-op de Décio Pignatari, foi editado por nós em São Paulo em 1958. Prova de que a propalada divisão do movimento entre paulistas e cariocas, de fato, não existia como tal, àquela altura.
Vivendo no Rio e frequentando a redação do Jornal do Brasil, homem extremamente afável, Zelino continuou colaborando no Suplemento Literário mesmo depois que fomos alijados de suas páginas. Enquanto pôde, ele encaminhava, com a ajuda de Faustino, o material que enviávamos de São Paulo e que passava pela rigorosa censura de Gullar e Reinaldo Jardim, ávidos por pretextos para se livrarem de nós. E nos defendia sempre de intrigas e de ataques. Entre outras proezas, Zelino contraditou brilhantemente o crítico José Guilherme Merquior quando este, que estreava no Jornal do Brasil, para agradar aos nossos adversários e assim conquistar um espaço no Suplemento, tentou demolir o finíssimo poema "caviar o prazer" de Pignatari. Estávamos em 1959.
Sob certos aspectos, Zelino era mais "ortodoxo" do que nós. Permaneceu fiel à poesia concreta dos primeiros tempos, tanto que, em dezembro de 1999, incluiu o poema "LIFE" de Pignatari e "cidade/ city/ cité", duas produções da safra dos anos 50 e 60, na lista dos dez melhores poemas brasileiros do século que elaborou para o suplemento Mais! do jornal Folha de S. Paulo (espírito sumamente lúdico, ele adorava as listas de dez mais, prática que remontava aos seus tempos de critico cinematográfico dos jornais do Rio).
Zelino sempre afirmou jocosamente que tinha "complexo de Peter Pan". Não se desligava da infância. E jamais se desvinculou de seus inícios literários, das primeiras amizades e da poesia concreta, a da "fase geométrica", da "idade de ouro", como a chamava, apesar de alguns desvios e deslizes bem humorados. Talvez por isto, quando começou a se intensificar a diáspora do movimento, em meados dos anos 80, parece que Zelino se desorientou. Passou por uma crise de identidade poética e veio a ocupar-se mais de traduções e antologias do que de seus próprios poemas. Mas chegou a reunir as suas criações poéticas numa edição de bolso, belamente intitulada Escreviver, embora de formato acanhado, pouco adequada para abrigar as elaboradas estruturas gráfico-espaciais de muitas das suas composições.
Originalíssimo, extravagante até os limites da contradição, Zelino não era apenas poeta, nem se restringiam à literatura os seus interesses. Critico de cinema e de música popular, foi pioneiro na avaliação de Godard e Resnais, Kubrick e 2001 Lembro-me do imenso entusiasmo com que um então juvenilissimo critico de cinema, Rogério Sganzerla, se referiu ao artigo "Viver o Cinema ou Godard ou a Objetividade Total", que Zelino publicara na revista Invenção numero 4, em 1964, com a qual eu presenteei o ainda aspirante a diretor cinematográfico que me fora apresentado pelo crítico Almeida Salles. As especulações de Zelino nessa área sintonizavam com a ideologia dos cineastas mais ousados. Foi também pioneiro na revisitação de, entre muitos outros, Mario Reis e Orlando Silva, Carlos Gardel e Cole Porter (de cujo acervo de gravações trouxe à tona uma raridade, a admirável interpretação do próprio Porter cantando ao piano "You're the top").
Selecionava com ouvido apurado o mel do melhor – coisas incríveis, que só ele conhecia, como "Pé de Mulata" de Pixinguinha com Patrício Teixeira e os Oito Batutas, gravação de 1928, "Canção para Inglês Ver", de Lamartine Babo, com o próprio, e "Rancho Fundo", com música de Ary Barroso e letra de Lamartine Babo, no primeiro registro da composição, com a insuperável Elisinha Coelho, ambas as gravações de 1931 (ano em que nascemos os dois, quase no mesmo dia, ele em 13, eu em 14 de fevereiro), ou uma das primeiras aparições de Moreira da Silva, seresteiro, antes do breque, em "No Morro de São Carlos" de Hervê Cordovil e Orestes Barbosa (1933), ou ainda aquela que Zelino considerava talvez a mais perfeita interpretação de Orlando Silva, um antigo vinil de 1939 com a valsa de Joubert de Carvalho "Por Quanto Tempo Ainda?", em que Zelino enfatizava a extensão icônica da palavra "tempo" cantada em voz de cabeça.
Gostava de frisar essas "pedras de toque" interpretativas, a surpresa da primeira intervenção quase-falada de Mario Reis, contrastando com um melodioso Francisco Alves em "A Razão Dá-se a Quem Tem" (1932) de Ismael Silva e Noel Rosa, um dos maravilhosos discos da dupla. E apreciava comparações, as vezes as mais esdrúxulas. Quem senão ele seria capaz de pôr lado a lado Orlando Silva e Vicente Celestino, em gravações dos anos 30, cantando "Última Estrofe" de Candido das Neves?
"Zelino's hits", dizia eu quando, nos bons tempos, ele punha essas pérolas na vitrola para ouvirmos e das quais guardo, entesouradas, duas preciosas fitas-cassete. Foi também o primeiro a ler com olhos novos Nelson Rodrigues, de quem se tornou amigo e personagem. Era, como me afirmou Décio Pignatari, numa de suas definições provocativas, um paradoxal "aristocrata lúmpen" que transitava sem dificuldade ente o alto e o baixo repertórios. Dentre os seus numerosos artigos e estudos literários, são apreciáveis os polêmicos, de primeira hora, e, defesa da poesia concreta e outros tantos, também pioneiros, como o que reivindica o modernista Luis Aranha e o que põe em foco os poemas curtos de García Lorca.
Nos anos 60, colaborava assiduamente no Correio da Manhã, onde, ao lado de Otto Maria Carpeaux e Antonio Houaiss, escreveu editoriais políticos, antimilitaristas, e dirigiu com Paulo Francis o "Quarto Caderno" cultural. Depois que os militares liquidaram com o bravo jornal carioca, vendo-se afastado do convívio das redações, que tanto apreciava, Zelino perdeu muito do seu pique. Por volta dos anos 70, começou a operar-se uma grande transformação em sua personalidade. Ubertaram-se os duendes da galhofa e do sarcasmo, escondidos na timidez juvenil do intelectual cordialissimo que se proclamava docemente um inveterado pagão, e o ludismo e a irreverência assomaram o primeiro plano, traduzidos em boutades e atitudes engraçadas e paradoxais, em tiradas de efeito, nem sempre muito consequentes. Contudo, quando voltava a trafegar seriamente pelo universo da alta cultura, suas referências eram nada menos que Pound e Mallarmé e os abomináveis homens das neves de sempre – os poetas concretos. Goste-se ou não, assim era o Zelino.
A sua morte veio somar-se, tantos anos depois, à morte prematura de Mário Faustino nos anos 60 – e essas são para mim as perdas literárias mais significativas de minha geração. A elas haveria de acrescentar o desaparecimento da figura abnegada, íntegra e generosa de Erthos Albino de Souza, poeta e pesquisador, morto poucos dias antes de José Lino, e a cujo apoio material e intelectual se devem as (re)visões de Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, além da revista Código, da Bahia, e tantas outras publicações da "margem da margem" que ele apoiou e financiou (inclusive a Caixa Preta, que publiquei com Julio Plaza)
Foi José Lino Grünewald, em suma, um grande companheiro e um grande amigo. Uma das personalidades mais originais de sua geração, sofisticado demais para ela, tinha poucos interlocutores à sua altura e, nos últimos tempos, despaisado na cidade natal que continua linda, disfarçava na euforia de superfície o seu requintado culto à poesia. Restam inéditos em livro muitos dos seus importantes estudos literários, assim como os seus relevantes artigos sobre cinema e música popular. Urge reuní-los e publicá-los, assim como republicar numa edição condigna o seu livro de poemas, onde, entre outras "pedras de toque", figura o seu lapidar "vai e vem", admirado por Max Bense. Mais folclorizado do que compreendido, mal medido pela mediocridade do nosso presente, será melhor lembrado amanhã. Há de inverter o seu destino, como gostava de fazer pinçando palíndromos nas mais inventivas letras de tango: REVÉS. VESRE.
Vai e vem.

Folha de S.Paulo
08/10/2000

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

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