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Nova Fronteira procura ampliar o circuito de Bocage

Por Antonio Carlos Olivieri

Raramente, os artistas da língua portuguesa ditos “clássicos” são publicados em edições bonitas, sofisticadas ou luxuosas no Brasil. Na maior parte das vezes, circulam apenas em modestas edições didáticas que se destinam ao restrito circuito das escolas e universidades.
Era esse o caso do poeta neoclássico português Manuel Maria Barbosa du Bocage, que a Editora Nova Fronteira tenta resgatar para um público mais amplo com a publicação desta coletânea de poemas organizados pelo poeta e tradutor José Lino Grünewald.
A iniciativa é louvável por colocar Bocage – que juntamente com Camões e Pessoa alçou-se ao podium da literatura portuguesa – no sei devido lugar, ao lado de Eliot, Pound e Baudelaire, no contexto de uma coleção brasileira que pretende reunir os grandes poetas da literatura universal.
Lugar merecido e que, se às vezes lhe é negado, cabe a culpa aos falantes de sua língua, na grande maioria nada afeitos à poesia.
Não é de se espantar, por conseguinte, que o prefaciador inicie seu texto clamando contra a ignorância do “vulgo em geral”, para quem o poeta não passa do folclórico personagem de piadas “sujas” que se contavam nos anos 50/60. Mas os clamores de Grünewald são exagerados. O moralismo que brada no prefácio não é condizente com boa parte da vida de Bocage, principalmente seus anos de juventude, dedicados a uma boêmia devassa que lhe inspirou muitos versos, alguns brilhantes.
De resto, poesia erótica ou pornográfica, como sabe José Lino, sempre existiu, desde a Grécia até os garotões que hoje versejam seus desejos, pixando-os nos muros das cidades.
Particularmente, no Brasil, dispõe-se já nos primórdios de nossa civilização (se é lícito assim chamá-la) de um mestre do gênero – o baiano Gregório de Mattos Guerra.
Não é o caso, portanto, de fazer disto um cavalo de batalha. Antes vale notar o que mantém de poético um texto de caráter explicitamente pornográfico.
Tanto em Gregório quanto em Bocage o erotismo e a pornografia são sempre permeadas pela engenhosidade da linguagem – no sentido amplo do termo, abrangendo da fonética à semântica – com que tecem seus poemas ou glosam seus motes.
Vale por fim lembrar que a concepção de sexo expressa nos versos do que Grünewald chama “obra marginal” de Bocage, se causa espanto, espanta é pela alegria, pela naturalidade, pela inexistência da culpa com a que civilização judaico-cristã inoculou a libido. Assim se expressa a adúltera Manteigui, ao descobrir os dotes de seu amante negro (pág. 324):
“Ah! Se eu soubera (continua o coro/ Em torrentes de sêmen já nadando)/ Se eu soubera que havia este tesouro/ Há que tempos me estava regalando!”
Assim expressa Elmano (pseudônimo poético de Bocage, como rezava a cartilha neoclássica) para sua Nise, em soneto anti-hipocrisia manifesta (pág. 330):
“Todas no mundo dão a sua greta:/ Não fiques pois, oh Nise, duvidosa/ Que isto de virgo e honra é tudo peta.”

Lirismo


Mas nem só nesta concepção avançada de sexualidade reside a atualidade de Bocage. Em seus poemas líricos – erguidos sobre o confronto entre a “razão” peculiar ao século 18, o equilíbrio típico do projeto neoclássico e o egotismo que prenuncia o século 19, o desequilibrado “amor” do Romantismo –, não faltam aproximações com o lirismo de parte da música popular brasileira, à moda, por exemplo, de um Lupiscínio Rodrigues.
São inúmeros os versos que vertem a mais puta “dor de cotovelo”, que expressam o sofrimento do poeta diante da infidelidade da amada, ou do despreza que, a ele, ela devora, ou ainda por ele simplesmente – embora de modo atroz – sentir saudades:
“Nisto acordei com dor, com impaciência;/ E não vos encontrando, olhos brilhantes,/ Vi que era a minha morte a vossa ausência!”
Não faltam exemplos em Bocage que revelem uma concepção de amor avassalada pelo exagero romântico que repercute ainda em cancioneiros como o do compositor gaúcho e de muitos de seus contemporâneos, ou, se preferir uma comparação com compositores mais recentes, em cancioneiros como o de Roberto Carlos (brega, pouco moderno, mas contemporâneo) (pág. 28):
“Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido/ Do mais, e de mim mesmo ando esquecido.”
Só cumpre reclamar que na ótima seleção de Grünewald não se faz presente o “E que tudo mais vá pro inferno” bocageano, o conhecido soneto que inicia com o verso “Importuna Razão, não me persigas”. Neste poema-chave, presentificam-se exemplarmente todos os elementos necessários para uma compreensão totalizante da obra lírica de Bocage. Fica claro, porém, para que se debruça sobre a coletânea, que esta ausência não impede que a compreensão se dê através de outros textos.

Circunstanciais

Quanto à poesia de circunstância, de que não se exime – ao contrário – a poética bocageana, Grünewald dá exemplos significativos, a começar pelo poema que abre o volume (pág. 23), apologia do escrever sob encomenda para garantir a sobrevivência:
“Crede, ó mortais, que foram com violência/ Escritos [estes versos] pela mão do Fingimento, / Cantados pela voz da Dependência.”
São circunstanciais também mas interessantíssimos os sonetos escritos durante a época em que Bocage serve sua pátria, na medida em que, retratando a decadência do Império português no oriente, dão um contra-ponto à épica de Camões (pág. 50):
“Caiu Goa, terror antigamente/ Do naire vão, do pérfido malaio,/ De bárbaras nações!... Ah! Que desmaio/ Apaga o márcio ardor da lusa gente?”
E, de circunstâncias, do fato de estar também engajado na armada portuguesa surge a brilhante (ainda que excessivamente marcada pela modéstia) comparação que Bocage faz entre si e Camões (pág. 45):
“Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!.../ Se te imito nos transes da ventura,/ Não te imito nos dons da Natureza.”
Nascem também das circunstâncias os versos contritos, que o poeta escreve pela proximidade da morte, fato que absolutamente não os desmerece. Cede a circunstância ao brilho de uma retórica engenhosa (pág. 109):
“Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube/ Ganhe um momento o que perderam anos,/ Saiba morrer o que viver não soube.”
Chega, portanto, a ser caso de reavaliar o que se chama de poesia circunstancial e dar a ela um novo “status” no universo da historiografia e da crítica literária, ainda mais porque boa parte da poesia moderna, dita “do cotidiano”, de poesia circunstancial se constitui, como exemplificam peças de Bandeira e de Drummond, sem falar no recente e o “Crime na Calle Redentor”, de João Cabral.
E reside nesta última constatação mais um fenômeno que ressalta a grandeza de Bocage. Ler seus textos implica necessariamente um questionamento de concepções seja sobre moralidade, seja sobre poética. Não se localiza precisamente neste questionamento, neste erigir-se eternamente como reflexo crítico do mundo e das visões do mundo (as poética ai incluídas) o estatuto da arte?
De resto, é concordar com José Lino Grünewald quando se questiona a contradição na obra bocageana, e citar com ele Walt Whitman: “eu me contradigo, então sou imenso, contenho multidões”. Bocage continha.

Folha de S.Paulo
30/01/1988

 
Poesia
Estado de Minas 10/09/1961

Eruditos & eruditos
Carlos Heitor Cony Correio da Manhã 28/09/1963

Prelúdio do Zé Lino
Carlos Heitor Cony Folha de S.Paulo 26/05/1965

A contracultura eletrônica
Jacob Klintowitz Tribuna da Imprensa 18/05/1971

Transas, traições, traduções
Carlos Ávila Estado de Minas 02/12/1982

Escreve poemas, traduz Pound, é crítico de arte e é de Copa
Vera Sastre O Globo 03/10/1983

O brilhante esboço do infinito jogo de dados
Nogueira Moutinho Folha de S.Paulo 09/12/1984

Diário das artes e da impensa
Paulo Francis Folha de S.Paulo 12/01/1985

Igitur, um Mallarmé para iniciados
Salete de Almeida Cara Jornal da Tarde 08/03/1985

Grünewald traduz Ezra Pound
Jornal do Brasil 12/03/1985

O grande desafio de traduzir Pound
Sérgio Augusto Folha de S.Paulo 16/03/1985

O presente absoluto das coisas
Décio Pignatari Folha de S.Paulo 06/09/1985

Ezra Pound - entrevista
Gilson Rebello Jornal da Tarde 26/10/1985

Pound, traduzido. Uma façanha ou loucura?
Isa Cambará O Estado de São Paulo 05/12/1986

J. Lino inaugura forma de pagamento
Ângela Pimenta Folha de S.Paulo 07/12/1986

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