José Lino Grünewald, tradutor de “poesia Inglesa do Século XIX” traz agora a “Poesia Francesa do Século XIX”. Também pela Nova Fronteira, com traduções de poemas de Victor Hugo, Téophile Gautier e Artur Rimbaud, entre outros
Shelley, em sua famosa Defesa da Poesia, escrita em 1821, afirma que a atenção do poeta deve estar fixada simultaneamente no centro e na circunferêcia do conhecimento. Queria ele dizer que a poesia do seu tempo não podia deixar de tomar o real como horizonte sobre o qual o poeta deveria pontificar o fluxo de suas percepções e imagens. Na difícil tensão entre sujeito e objeto a poesia abriria caminho para uma diferente sensibilidade. Estamos no início do século 19 e o romantismo, a partir da Alemanha, lança. tentáculos cada vez mais firmes no contexto literário da Europa. Do ponto de vista político, o triunfo da burguesia abre espaço a um debate de idéias fecundo e ao surgimento dos primeiros sinais de descontentamento social.
Dentro desse contexto, a França torna-se sem dúvida um lugar privilegiado para a eclosão de toda uma aventura estética, que a poesia vai representar de modo radical. Um passeio por esta aventura é o que propõe o livro Poetas Franceses do Século XIX, reunindo traduções de José Lino Grunewald, em edição bilíngüe, para alguns dos mais importantes poemas que marcaram a época. O mesmo tradutor já nos apresentara Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX e, juntamente com a obra monumental Os Cantos, de Pound, e Poemas, de Mallarmé, confirma seu inestimável talento para a transposição poética.
Propondo-se como uma "descompromissada vivência de leituras", a verdade é que esta coletânea faz emergir as forças principais que atuaram na poesia francesa do século passado. Iniciando pelo lirismo evocatório de Lamartine, a sentimentalidade romântica avança por nuances que singularizaram os seus representantes maiores: Victor Hugo está presente com dois poemas (desproporcional à sua importância), confirmando a vigorosa plasticidade dos seus versos; Gerard de Nerval tem traduzidas duas de suas "Chimères", permanecendo ainda atual o toque de mistério que o ritmo dos seus sonetos constrói; os poemas que representam Alfred de Musset, por sua vez, apenas sugerem o tema do sofrimento que, em sua obra, tornou-se motivo central.
Inspiração e idealismo resumem, portanto, os preceitos gerais que marcam a primeira produção do século. Em reação a essa postura, a defesa do culto à forma vai surgir com Théophile Gautier, que se torna o defensor da concepção de arte pela arte, cujo purismo professa em versos: "Sim, a obra sai mais bela,/ Se, em forma que remata,/ Rebela,/ Mármore, esmalte, verso, ágata".
A convivência entre a aspiração ao artístico e a atração pelos sinais do mundo vai, enfim, despertar através de Baudelaire uma revolucionária possibilidade de criação. Incrustado na virada da metade do século, seu pensamento tornou-se decisivo para a eclosão da modernidade em língua francesa. Uma nova atenção passa a valorizar "o transitório, o fugitivo, o contingente"; conseqüentemente, o poeta reconhece que o limite do seu fazer está na linguagem; a partir dessa consciência atira-se à conquista da liberdade, ou seja, da expressão.
Mallarmé, Rimbaud e Lautreamont vão multiplicar essa trilha por caminhos próprios. A sensibilidade que os românticos projetavam sobre os fenômenos da natureza - evocando todo um ciclo de imagens e símbolos - já não serve para o poeta afetado pelo spleen e saudoso de um ideal perdido. Os temas grandiosos e míticos cedem vez a uma irreverência mundana e subjetiva (em Verlaine) ou a uma sensualidade mágica (em Charles Cros), que retiram do cotidiano a sua força, sem perder a beleza melodiosa. Outra possibilidade está em Jules Laforgue, que explora o jogo sonoro das palavras, num tropel inusitado de significações.
Um passeio rápido por poéticas tão distintas, acompanhando um século de profundas transformações históricas, resulta finalmente num panorama de intensa experiência. O que o leitor depara nestas páginas funciona como um puzzle, em que a particularidade de cada autor reverbera nos demais, e vice-versa. Longe dos didatismos, a coletânea permite entrar em contato com sensibilidades que se tramam no desencadear da cultura, sem progresso nem cronologia rígida. Afinal, poesia não se explica em linha reta. Ela vibra ao mesmo tempo no centro e na circunferência.
O Estado de São Paulo
28/12/1991