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Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro

Guimarães Rosa, ao escrever seu romance, abria o balaio de metáforas, encontrando um festival de visões. Avancini, ao recriá-lo, inventou o desafio e está na berlinda.

Bem. O sertão está aí. Na TV. Guimarães foi a rosa da prosa. "Diadorim do meu amor, põe o teu pésinho em cera branca que eu rastreio à flor de tuas passadas". Isto é amor à arte. O resto é literatura.
Um dia, não mais que um dia (ou de-repente) perguntei ao gênio Rosa: o que vai fazer agora? Respondeu (silente e solene): estou vazio. Era a fala do escritor - (do prosador). Mas Guimarães Rosa também me falava do seu balaio de metáforas. Vou dizer para o leitor, "mon semblable, mon frère". Estávamos num lotação - modalidade de veículo que existia enquanto o Rio de Janeiro ainda sustentava o símile de capital da República. Brasília, a Atenas envidraçada, começava a se afirmar. Então, disse Rosa que, durante o percurso de qualquer condução, quando lhe surgia uma idéia na cabeça -geralmente uma imagem fantasiada de metáfora - anotava o negócio num papel e atirava para dentro de um balaio. O balaio de metáforas. Na hora de escrever um romance, um conto, uma novela - seja lá o que fosse - abria a cesta e já encontrava o festival de visões. Certo dia, estava com ele e que profissionalismo! Rosa estava a rever a tradução francesa de seu conto -"A Outra Margem do Rio"- e alterava as palavras da língua par com imenso senso de objetividadé.
Cansado, algo ofegante em lidar com o idioma de Racine, disse-me em tom metódico: "Sei falar umas sete ou oito línguas, mas conheço a gramática de todos o idiomas". Eis aí o problema da Forma que, em última instância, constitui o problema da arte. Aliás, no tocante, melhor falar a palavra criação. O que é arte? Ninguém mais sabe. Nem Rosa se preocupava com isso.
Assim ele forjou aquele maravilhos conto do cara que foi xingado de famigerado e viajou a fim de saber o significado da palavra. Atrás da gravata borboleta, ria e sorria. Saber. E o ritual do mistério. Guimarães Rosa sabia que escrevia para poucos e, ainda assim, alguns desses poucos se davam ao trabalho de não entendê-lo. Pior prá eles.
Grande Sertão: Veredas. Vamos falar ridículo: quiçá o maior romance em língua portuguesa. GR, além de manejar vivencialmente com a língua, brincava com a linguagem. Augusto de Campos, num antigo ensaio publicado pela revista do Instituto Nacional do Livro, já havia explicado o que era o mallarmaico "lance de dês do Grande Sertão". Rosa era tudo: a PRosa. E poesia: por quê não? Sim, "num mim de minuto". Um rastejar, um varei o do acaso: "aragem do sagrado/ absolutas estrelas". De novo, Mallarmé.

Invenção do desafio

Mas, além de fazer trivela com a língua e a linguagem, Rosa foi um excepcional fabulista. Ou seja: inventava histórias (ou estórias). Com língua ou com linguagens.
Chegamos então ao narrador, ou melhor, Walter Avancini. O Grande Sertão na TV. Avancini inventou um desafio; desdobrou-o e, hoje, está, na berlinda. Tem medida de grandeza, pois, fácil, seria repetir qualquer "Roque Santeiro" da vida. Viva Roque. Mas, viva a invenção. Afinal, o paciente grande público está aprendendo um pouço de Rosa na TV. Bruna Lombardi com os olhos lindamente claros a irradiar o mistério de Diadorim representou um achado. Hoje, ainda se fala em cinema - ou pior - em ir ao cinema. O cinema não existe, existe a televisão. Qualquer anúncio de calcinha ou dentrifício supre a avant-garde de Germaine Dulac ou de Epstein – quiçá de Eisenstein. A rima é sempre uma solução. Não queremos, em suma, apresentar uma solução - a dúvida em geral mora na alma dos sábios, a certeza no alguidar dos cretinos.
Em termos cinematográficos, nada a opor ao estilo Avancini. Mas, o tartamudeio funcional dós diálogos deveria ter legenda. Todo mundo sabe que o matuto tartamudeia -isto é válido - mas o telespectador quer saber o que está acontecendo. O Grande Sertão está sendo uma grande experiência - mas exige um mínimo de trampolim verbal. Avancini esbarrou no desafio. Melhor: desafiou-o conscientemente. Um dia explicou que a galera, ou seja, o telespectador de classe D ou E não assimila o long-shot - mais de um significado dentro do quadro é demais. Que não dizer do planosequência - aquele de Welles e Wyler? Mas o nosso maior diretor de TV (e, em sendo, assim, de cinema, com a exceção de Julio Bressane) sabia que era impossível tratar a Rosa da prosa no vídeo sem alguns artifícios intelectuais. E vai levando – e fazendo um marco – debatível - porém um marco. Grande Sertão: Veredas representa uma consequência até que tardia do clássico Gabriela, tal como Guimarães Rosa traduz uma consequência muito superior à prosa goiabadal de Jorge Amado. E aqui entra o turning point do que se entende por "gênero" romance com a metalinguagem do narrador.
O narrador? Metalinguagem consiste em qualquer linguagem cujos símbolos referem-se à propriedade dos símbolos de outra linguagem. Enfim, no caso do romance, é o narrador (tão fingidor como Pessoa) que faz de conta que está relatando algo, alguma coisa. Rosa fez um show-off de metalinguagem no seu longo e maravilhoso conto, "Meu Tio o Iauaretê” (que já motivou um ensaio, como de praxe, exemplar, de Haroldo Campos), na hora em que o contador vai virando jaguar e o interlocutor, no desfecho, atirará nele: "Faz isso, não, faz não... Heeé!... Hé... Aar-rrâ... Araaã... Aaâh... Cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucàanacê... Araaã... Uhm.... Ui,… Ui… Uh... uh... êeê-e... êê... ê... ê...

Narrador-escritor

O narrador deixa de ser o personagem para se transformar no escritor em si, tombado na própria evidência do fazer. O caso de Agatha Christie no sensacional "O Assassinato de Roger Ackroyd" é típico e radical: um romance policial narrado na primeira pessoa do singular e onde o assassino é o contador. Dame Agatha driblou a maioria dos leitores e, sem querer, degustou as propriedades de outra linguagem, ou seja, aquela do romance policial que já não mais estava escrevendo.

Quem narra o narrador? Este, o tema que James Joyce se esqueceu de navegar. Como o que se define como cultura vive de seu veícuto, a TV é o grande veículo do século. Ninguém mais lerá Rosa; verá Avancini e o pincelar de sua câmera. Quando a TV, apesar de todos os esforços do cineasta, começa a tropeçar na metalinguagem, há sinal de mouros ou miúras na costa. É um novo universo. Todos os que se julgam inteligentes são obrigados a pensar no que estão fazendo.

Folha de S.Paulo
01/12/1985

 
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