O poema em foco - III / E. E. Cummings: Poema
minha dama
de miúda cabeça modelada em pêra
por viscosa penumbra
se movendo, súbito
três animais é. A
minicintura continuamente
com trejeito africano
revela uma tensa e frívola meia
Menina que (qual
cobra flutuando sempre e sobre si mesma e
lentamente, certo, para cima a fluir) emite
uma postura
:para, malévola, se agitar
enquanto as pernas grandes e firmes
marchando majestosas
como belos elefantes
coléricos e cautelosos
(unidas a murmurantes coxas
espêssamente delicadas
pensativamente)
lembram-me a Mulher e
como entre suas ancas
Índia está
Este poema sem titulo funciona como um bom exhibit da técnica de e.e. cummings, um dos maiores nomes da literatura norteamericana dêste século. Aqui não está presente o cummings mais radical em sua linha de vanguarda, o poeta que, talvez como ninguém, soube conferir uma utilização extremamente inventiva à disposição tipográfica e extrair ilações expressionistas dos próprios sinais de pontuação. Com relação a essa parte de sua obra, poderemos remeter inclusive o leitor às traduções (revisadas pelo próprio cummings) que Augusto de Campos realizou, em edição do Serviço de Documentação do Ministério da Educação, na época sob a direção de Simeão Leal.
Mas a inventiva do poeta não residia tão-somente na reorganização espacial da sintaxe e naquela fisiognomia do movimento temático que tão bem sabia processar com o isolamento de letras e fracionamento das palavras. Como uma ampla obra, foi um dos maiores poetas líricos dos últimos tempos e - também de certa forma como ninguém - soube dar um tratamento único às frases poéticas dentro dos recursos de versificação. A aglutinação, as pausas, os enjambements, os cortes de palavras ficavam utilizados permanentemente no teor de uma objetividade construtiva, com imagens oferecidas mediante os modos mais inusitados de associação.
No poema que, aqui, traduzimos, está presente o cummings da vertente mais discursiva, mas que renova um motivo comum e tradicional (a descrição de uma mulher) através de nomeações e comparações insólitas, enquanto, violando ou deslocando critérios usuais de pontuação, a peça, como um novêlo, rola e se desenrola entremeada de pausas ou silêncios abruptos. Os símiles cumminguianos, neste poema, conduzem à comparação da mulher em movimento com as modulações de animais como a cobra ou o elefante, além da cabeça como pêra. Talvez, por todos êsses elementos entrosados ou justapostos, o poema, não pela técnica, mas pela expressão em si, lembre, analogicamente, um quadro de Picasso, numa etapa entre o cubismo analítico e o nôvo realismo do criador de Les Démoiselles D' Avignon.
Notar igualmente a sensibilidade no uso dos parênteses, como um paralelismo que reforça o fluxo descritivo, além dos cortes e dos enjambements prefixando um ritmo peculiar e instigante na contraposição das nomeações. E, quanto ao conceito final - "how between her hips India is" - temos, não somente uma síntese precisa, mas a angulação que remete à segunda retomada do poema, desde o inicio.
Esta peça faz parte do livro & (and), publicado em 1925.
nota e tradução José Lino Grünewald
Correio da Manhã
20/09/1968