Primeiro a coincidência do momento, do agora desta página: a primeira tradução que publiquei de um Canto de Pound (o Canto XVII) foi aqui, na TRIBUNA DA IMPRENSA, em 25 de fevereiro de 1961. Na época, se não me engano era (ou acabara de ter sido) Sergio Lacerda, editor deste jornal - quem, juntamente com Sebastião Lacerda, está à frente da Editora Nova Fronteira, a mesma que, nos tempos de hoje, lançou, no Brasil, a publicação de todos Os Cantos.
Traduzir a complexa epopéia poundiana enseja uma série de dificuldades díspares. No meu caso particular, havia mais uma, logo de início: estava obrigado a realizar versões diferentes de vários Cantos daquelas já concretizadas anteriormente, por Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari (sem falar em Mário Faustino). Se deu certo se me desviando intencionalmente das traduções (são dezenove) dos poetas experts acima citados apresentei outras soluções válidas, fica tudo entregue ao esforço, ao acaso, ao correr do tempo. A aferição pode começar através do cotejo com as traduções publicadas no livro Ezra Pound Poesia (Editora Hucitec), onde nós, os cinco poundianos navegamos nos textos do velho.
É isso aí. As dificuldades básicas de traduzir Os Cantos dizem respeito ao seu universo referencial. São cerca de vinte mil versos (ou linhas) a se reportar a outras tantas milhares de denotações ou conotações com pessoas, lugares ou eventos. Biografia, História Universal ou Geografia são matérias entremeadas num quase sem fim. E Pound dá de barato: não explica ou deixa pistas em torno do motivo de estar invocando fulano, beltrano ou sicrano, ou aqui, ali ou alhures. Escreveu basicamente em sua língua, porém com a inserção incessante de outras, seja o chinês, o grego, o alemão o francês, o latim, o provençal etc. Nisso tudo, tive de ser o cicerone de mim mesmo também ciceroneado pela consulta a livros e outros focos de referência.
Outro dado: a falta de uma lógica linear no sentido estrutural. Todos os poemas épicos consistem relatos com um mínimo do tradicional princípio-meio-fim. Pound, de certa forma (e influenciado pela idéia oriental do ideograma) substituiu o primado do relato pela montagem de registros ou pseudoregistros, onde aquilo que se entende por "narrativa" se esfacela, pois seu tempo fica sacudido num vaivém contínuo histórico-geográfico. Em paralelo, a prosa invade o espaço da poesia e vice-versa. Pound é o Eisenstein da poesia – lembrando que este último também recorreu a literatura oriental a fim de exemplificar suas concepções de montagem (basta ler O Princípio Cinematográfico e o Ideograma, que, aliás traduzi em 1957).
Enfim, Pound foi contraditório estética e politicamente? Sim. Mas, isso não lhe furta a medida. Como dizia Paulo Francis, outro dia, aqui neste Caderno, Os Cantos podem não ter sido o maior, mas foi o poema mais importante deste século.
Tribuna da Imprensa
01/06/1987