Editada pela Sabiá, está em circulação a obra completa atualizada de João Cabral de Melo Neto. Um volume que, segundo critério estabelecido pelo autor, também anteriormente, em Duas Águas, apresenta a sucessão de poemas numa cronologia invertida, isto é, começa pelo último livro - A Educação pela Pedra – e termina pelo primeiro – Pedra do Sono – na sintomática coincidência da palavra pedra, têrmo chave na codificacão básica cabralina. Pois o aspecto petrosi de seus poemas remete imediatamente àquele ciclo de Dante, do qual, aliás, já possuímos excelente tradução para o português, feita por Haroldo de Campos. E essa obstinação pela poesia-pedra já está presente na Pequena Ode Mineral, publicada no livro O Engenheiro: “procura a ordem/ que vês na pedra:/ nada se gasta/ mas permanece".
Além de Dante, a genealogia cabralina reside no caldear de outros elementos perceptíveis, como Drummond (fase de formação, até O Engenheiro), Mallarmé e Valéry (meditação sobre a poesia), algo do surrealismo on Murilo Mendes (também na primeira fase), da poesia elizabetheana ou específicamente da metafísica, John Donne em especial, Espanha e poesia espanhola, sem falar na raiz radical da experiência: o Nordeste brasileiro, cujo grande motivo temático é o rio Capibaribe. A obra de Cabral aproxima-se muito, em paralelo, daquela de Francis Ponge na faixa do descrever-apreender o objeto, na procura de sua essência mediante um processo de interiorização calcado no registro e notação de seus aspectos exteriores, concretos. Tudo é submetido ao perscrutar rigoroso e que, na medida em que vai acepilhando dados, elabora uma escala construtivista da dicção versificada: objetos, homens, animais, paisagens, ténicas e até substantivos abstratos que ganham a sua fundamentação na coisa pétrea. Mas cessa até antes daí a comparacão com Ponge (que, aliás, em lugar dos recursos do verso, prefere utilizar a notação prosaica): João Cabral é um poeta bem superior a ele.
No panorama da poesia brasileira e mesmo universal, João Cabral pode ser considerado aquilo que se denomina de inventor, segundo a acepção original de Ezra Pound: criou um novo processo, com a sua técnica rigorosa – minuciosa no verso-novelo, uma dicção sêca, no pêso de pedra, onde as palavras são insubstituíveis e a progressão semântica é fruto do obstinado racionalismo, análogo ao do matemático. Temática ou matemática. Note-se, essa tendência não obedece apenas à água mais teórico-estática do poeta, mas também àquela que escorre da sêca nordestina, embora, neste caso - e intencionalmente - mais prosáica. A epígrafe de O Rio – seu poema mais longo -, que foi extraída de Berceo, é sintomática: "Quiero que compogamos io e tú una prosa". O Rio é uma épica, é a "travessia” permanente e o fato de o herói não se concretizar num ser humano e, sim, no Capibaribe, torna-a mais densa, menos individual, menos casuística, mais coletiva. Da mesma forma, esse rio já surgira ainda mais tenso em sua densidade, em O Cão Sem Plumas, onde, no entanto, sob o escorrer épico-telúrico dos versos-água, a opção lírica do autor permite-lle a criação de algumas de suas metáforas mais vigorosas: ''Entre a paisagem/ o rio fluía/ como uma espada de liquido espêsso" * “(Como o rio era um cachorro,/ o mar podia ser uma bandeira/ azul e branca/ desdobrada/ no extremo do curso/ - ou do mastro - do rio” * "o mar e sua carne/ vidrada, de estátua”.
O poema sobre o poema tornou-se uma vertente constante mais específicamente a partir de Mallarmé (ou do simbolismo) quando o poeta começava a desconfiar do instrumental, da capacidade de dizer para mover e comover. João Cabral, no Brasil - pelo menos antes do advento da poesia concreta - foi quem mais se debruçou sobre isso. Ao longo de sua obra completa, coletamos 18 poemas onde, estrutural ou ocasionalmente, coloca um tijolo em sua teoria poética. Enquanto se faz poesia, a teoria é gestada e, digerido o texto, sobreleva-se um pretexto de mergulhar no mecanismo da linguagem. Pode-se decalcar toda a sua teoria transcrevendo trechos dos 18 poemas. Vamos fazê-lo, ressaltando entre eles os que são inteiramente sobre a própria poesia e, agora, ao contrário do autor, por ser mais funcional, no caso, restabelecendo a ordem cronológica: 1 - "o poema inquieta/ o papel e a sala" (Poema da Desintoxicação); 2 - "mas é no papel,/ no branco asséptico/ que o verso rebenta/ como um sêr vivo/ pode brotar/ de um chão mineral?” (O Poema); 3 - "Toda a manhã consumida/ como um sol imóvel/ diante da folha em branco:/ princípio de mundo, lua nova” (A Lição de Poesia); 4 - "Não há guarda-chuva/ contra o poema/ subindo de regiões onde tudo é surpresa/ como uma flor mesmo num canteiro" (A Carlos Drummond de Andrade); 5 - "ó acaso, raro/ animal, fôrça/ de cavalo, cabeça/ que ninguém viu;/ ó acaso, vespa/ oculta nas vagas/ dobras da alva/ distração" (A Fábrica de Anfion); 6 - "não a forma encontrada/ como uma concha, perdida/ nos frouxos areais/ como cabelos;/ não a forma obtida/ em lance santo ou raro/ tiro nas lebres de vidro/ do invisível; / mas a forma atingida/ como a ponta do novelo/ que a atenção, lenta/ desenrola,/ aranha; como o mais extremo/ dêsse fio frágil, que se rompe/ ao pêso, sempre, das mãos/ enormes/ é mineral o papel/ onde escrever/ o verso; o verso/ que é possível não fazer/ são minerais/ as flores e as plantas/ as frutas, os bichos/ quando em estado de palavra,/ é mineral/ a linha do horizonte/ nossos nomes, essas coisas/ feitas de palavras,/ é mineral, por fim,/ qualquer livro;/ que é mineral a palavra/ escrita, fria natureza/ da palavra escrita." - "cultivar o deserto/ como um pomar às avessas" (Psicologia da Composição); 7 - "poesia, não será esse/ o sentido em que/ ainda te escrevo:/ flor! /te escrevo:/ flor! não uma/ flor, nem aquela/ flor-virtude - em/ disfarçados urinóis)/ flor é a palavra/ flor, verso inscrito/ no verso, como as/ manhã no tempo/ flor é o salto/ da ave para o vôo;/ o salto fora do sono/ quando seu tecido/ se rompe; é uma explosão/ posta a funcionar,/ como uma máquina/ uma jarra de flôres" (Antiode); 8 - "e daí à lembrança/ que vestiu tais imagens/ e é muito mais intensa/ do que pôde a linguagem/ e afinal à presença/ da realidade, prima,/ que gerou a lembrança/ e ainda a gera, ainda,/ por fim à realidade,/ prima, e tão violenta/ que ao tentar apreendê-la/ toda imagem rebenta” (Uma Faca Só Lâmina); 9 – “sim, eu vi Manuek Rodriguez,/ Manolete, o mais asceta,/ não só cultivar sua flor/ mas desmonstrar aos poetas:/ como domar a explosão/ com a mão serena e contida,/ sem deixar que derrame a flor, que traz escondida,/ e como, então, trabalhá-la/ com mão certa, pouco e extrema:/ sem perfumar sua flor/ sem poetizar seu poema” (Alguns Toureiro); 10- “há algo de muscular,/ de animal, carnal, pantera,/ de felino, da substância/ felina, ou sua maneira/ de animal, de animalmente/ de cru, de cruel, de crueza,/ que sob a palavra gasta/ persiste na coisa sêda” (A Palavra Sêda); 11 – “não o de aceitar o seco/ por resignadamente/ mas de empregar o seco/ porque é mais contundente” (A “Palo Seco”); 12 – “falo somente com o que falo:/ com as mesmas vinte palavras/ girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca” (Graciliano Ramos); 18 – “Marianne Moore, em vez de lapis,/ emprega quando escreve/ instrumento cortante:/ bisturi, simples canivete”/ ela aprendeu que o lado claro/ das coisas é o inverso/ e por isso as disseca:/ para ter textos mais corretos” (O Sim Contra o Sim)”; 14 – “uma educação pela pedra: por lições;/ para aprender da pedra, frenquentá-la;/ captar sua voz inenfática, impessoal” (A Educação pelo Pedra); 15 – “a pedra dá à frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,/ açula a atenção, isca-a com o risco” (Catar Feijão); 16 – “quando um rio corta, corta-se de vez/ o discurso rio de água que ele fazia;/ cortado, a água se quebra em pedaços,/ em poços de água, em água paralítica/ em situação de poço, a água equivale/ a uma palavra em situação dicionária:/” (Rios Sem Discurso); 17 – “solúvel: em toda tinta de escrever,/ o mais simples de seus dissolventes”; (Retrato de Escritor); 18 – “todavia a folha, na árvore do livro,/ mais do que imita o vento, profere-o:/ a palavra nela urge a voz, que é vento,/ ou ventania varrendo o podre a zero” (Para a Feira do Livro). Mais poemas existem ainda dissecando o escrever; exigem, porém, a transcrição completa para ganhar sentido.
Pode-se também realizar um levantamento estatístico básico das palavras (“abelhas domésticas”) mais frequentes em sua obra. Elas conferem esse signo fundamental já descrito. Lembradas ao léu, aqui vão algumas: pedra, folha, flor, branco, rio, água, acaso, vazio, palavra, poema, poesia. A ira por um fio – “o poema, com seus cavalos, quer explodir” – mas sempre controlada, essa ira de vida e de angústia de criar do poeta. Mallarmé e o Nordeste, Valéry e o Capibaribe, a forma e a fome – dialética de heterogêneos que se fundem no texto cabralino. Engajamento total com o escreviver; não o engajamento untuoso-epidérmico, onde saltita o guevarismo ou o vietconguismo de gabinete ou o acesso aos sucesso em rodinhas influentes.
A obra de João Cabral de Melo Neto representou em nossa literatura filtro final do processo global no verso. Não diremos que é impossível, mas sera muito difícil retomar simplesmente a sua água e partir avante com o desprezar de novos elementos de informação estética, situados além da mera estrutura discursiva. Por isso também (não só por isso) consideramos João Cabral o maior poeta brasileiro até agora (Acima de Oswald e Mário de Andrade e, mesmo, de Drummond – este, a sua fonte que ele mais ainda depurou). O rigor de pedra de sua construção evitou grandes altos e baixos. E numa triagem radical, bastam poemas como O Rio, O Cão Sem Plumas, Antíode, Psicologia da Composição, Fábula de Anfion, Uma Faca Só Lâmina, A Palo Sêco, De Um Avião, Alguns Toureiros, A Educação Pela Pedra, A Carlos Drumond de Andrade, O Mar e o Carnaval ou Ria E/ Ou Poço para formar um monumento verbal, sem jaça, onde o dizer não é aleatório, fácil, flácido: é pedra, pensamento, poesia.
Correio da Manhã
14/04/1968