A chamada poesia metafísica - denominação assim cunhada por Samuel Johnson - e que cobriu, na Inglaterra, a segunda parte do século XVI e primeira do século XVII, além de John Donne (talvez o maior poeta em língua inglesa depois de Shakespeare) ou Richard Crashaw (um dos maiores expoentes da poesia barroca), legou também, através de Andrew Marvell, um outro notável poeta, que apenas a crítica do século XX passou a conferir a devida grandeza. Antes de entrar propriamente na obra de Marvell, é interessante ressaltar o espírito da época e as tendências intelectuais e formativas dos metafísicos. Segundo Alfred Alvarez, em The School of Donne, a importância dessa escola (se, assim, é possível denominá-la) consistiu em “tomar uma forma dialética, que se tornou rígida após séculos de contenda escolástica, e romper a sua estreita casuística; em açambarcar as ciências em toda a força imaginativa das novas descobertas e, reunidas, trazê-las como protagonistas no drama interior de uma poderosa experiência pessoal”. Na realidade, a importância dos metafísicos - Donne à frente - foi a de enriquecer a área semântica da arte poética, com a utilização de termos filosóficos, termos das ciências aplicadas (matemática, geografia, geometria, cartografia, etc.), além do fundo religioso, com a invocação ou incorporação de passagens bíblicas. Era uma poesia extremamente culta e - por isso - revolucionária, numa época em que o poeta geralmente extravasava o lirismo na estrutura mais leve das canções, com um fraseado mais ligeiro e terminologia mais singela. Os metafísicos, ao contrário, tinham como principal característica aquilo que Helen Gardner cita como strong-line (“linha forte”, em tradução ao pé da letra). De acordo ainda com a mesma autora, o strong-lined poem consumava o objetivo de uma expressão concisa, dentro de sintaxe elíptica e uma aspereza intencional de versificação. Daí, o hermetismo, do qual foram acusados pelos seus inimigos e como sempre, é, de início, a culpa lançada aos maiores poetas. Pois a reforçar aquelas estruturas já complexas, altamente engenhosas, havia o refinamento permanente dos jogos de palavras ou trocadilhos - puns.
Hoje em dia, os principais ensaístas contemporâneos deram uma resposta abalizada à incompreensão do dr. Johnson, o batizador da poesia metafísica. T. S. Eliot, que além do estudo sobre eles tem um ensaio dedicado a Marvell, Alfred Alvarez, Rosamond Tove, Helen Gardner, William Empson, Joan Bennett, Ezra Pound, Austin Warren, Herbert Read - são alguns nomes de estudiosos no assunto. Mesmo porque, a partir de Hopkins (que era uma cunha na poesia do período vitoriano) e chegando a um Dylan Thomas, um Hart Crane ou aquilo que se pode chamar de neo-barroco, houve uma revivificação, dentro da temática atual, de certas características básicas da poesia no período elizabethano ou jacobeano.
A importância de um poeta, como Marvell, reside assim na modernidade de determinadas constantes e que conduzem também àquela ideia de “despoetizar” o poema, como ocorreu com o nosso João Cabral de Melo Neto. O poema em si, deixava de ser lânguido avatar de desejos e devaneios emocionais ou pueris e passava a refletir uma arte extremamente intelectual, com meditações ou parábolas que perfaziam a recorrência sobre o próprio escrever. Nada de inspiração, espontaneidade ou facilidades. Marvell, por exemplo, não era apenas o intelectual de formação impecável, de cultura aplicada à época e ao ofício; dominava amplamente as técnicas do verso. Joseph H. Summers faz notar que um simples poema seu, The Garden, (O Jardim) fez diversos dos exegetas invocarem Buda, Plotinus, São Boaventura, Théophile de Viau ou Hermes Trismegistus. Alfred Alvarez, por seu turno, soube desvendar a impessoalidade intencional do seu estilo. Num poema, por exemplo, como The Definition of Love, mostra a inexistência de qualquer amor concreto impelindo o jogo de espírito: ao contrário, segundo ainda o mesmo crítico, trata-se até de um poema abstrato, cujo objetivo seria aquele mesmo do título: efetuar uma definição. E as duas quadras finais, antológicas, são exemplo poderoso da escola metafísica:
As lines so loves oblique may well
Themselves in every angle greet:
But ours so truly parallel,
Though infinite can never meet.
Therefore the Love wich us doth bind,
But Fate so enviously debars,
Is the conjunction of the mind,
And opposition of the stars.
(Assim como linhas, os amores podem, oblíquos, se saudar a cada ângulo: mas os nossos, tão deveras paralelos, embora infindos, nunca se podem encontrar. Portanto o amor que nos liga, mas o destino tão despeitadamente proíbe, é a conjunção do pensamento e contraposição dos astros).
É todo um exercício de inteligência culta, com um conceptismo bem peculiar, a usar elementos de astrologia e geometria para elaborar uma imagem dinâmica do amor platônico, do amor que a fatalidade impede sua materilização. Esse poema de Marvell se aproxima bastante de uma das valedictions (“forbidding mourning”, “proibindo o pranto”), de John Donne, que, por sua vez, com The Extasie - uma das leituras básicas colocadas no ABC of Reading, de Ezra Pound - realizou talvez a mais belo poema de amor platônico em toda a história da literatura. Mas, assim também como Donne, embora sem o erotismo deste último, Marvell possuía a sua vertente de poesia amorosa não-platônica. E o exemplo máximo disso em sua obra talvez também seja um dos pontos máximos dentro do âmbito temático na história da literatura, análogo à posição do famoso soneto de Ronsard, Quand vous serez bien vieille. Trata-se do poema mais conhecido de Marvell: To His Coy Mistress (À Amada Esquiva), onde o autor incita uma hipotética amada a se empenhar na paixão e nos prazeres carnais em vida, pois não há tempo a perder. E, além de imagens admiráveis, é com a ironia de uma logopéia habilíssima (Marvell foi também um ótimo satírico) que ele inicia o poema: “Had we but world enough and time,/ This coyness, Lady were no crime” (Tivéssemos o mundo inteiro e tempo/ Essa esquivez, Senhora, não seria crime”). Mas, depois de invocar uma série de conjunturas da eternidade, sempre sob o banho irônico - ele poderia ter começado a amá-la desde dez anos antes do Dilúvio e, ela, podendo dar-se ao luxo de refugar até o dia da conversão dos judeus - começa a lembrar o ruído do carro alado do tempo e diz que os vermes hão de experimentar a preservada virgindade.
Em outro poema excepcional, Eyes and Tears (Olhos e Lágrimas), utiliza de uma técnica nominativa permutacional dos dois objetos-temos - os olhos e as lágrimas - a fim de desenvolver considerações ao nível cósmico a respeito da unidade ser-sentimento, encerrando o poema através da magistral “chave de ouro” “these weeping eyes, those seeing tears” (esses olhos que choram, aquelas lágrimas que olham).
Todavia a obra dele que ressurge atualmente como o seu trabalho mais profundo e alentado é Upon Appleton House, um poema com 776 versos, dedicado a Lord Fairfax, de cuja filha Marvell foi preceptor, durante mais ou menos o período entre 1651 e 1653. Era uma espécie de obra muito comum na época, onde se saudava os nobres ou soberanos, mediante a descrição de sua casa e/ou suas riquezas. Marvell, contudo, em seu cumprimento, transcende o mero ofertorium requintado e elabora, com as suas invocações, o pun e a arquitetura barroca, uma engenhosa meditação sobre as relações do ser humano com o tempo e a natureza. O poema tem a sua parte inicial dedicada à descrição bucólica, a conter sempre na superestrutura a ideia de saudação ao retiro de Faixfax e Mary, sua filha. Mas já aí, o requinte e o arrojo das imagens conduz a similes altamente inventivos. Os jardins, como bem observa Joseph H. Summers, são descritos mediante terminologia militar, as flores tal qual fossem regimentos e, as abelhas, as sentinelas. Já um rio aparece como se fosse o elemento provedor de uma visão profética e sobrenatural do futuro. O surgimento de aves e insetos aumenta a dose de uma atmosfera estranhíssima à obra - já se torna impossível dizer que ela constitui somente paga ao patronato de Lord Fairfax. Basta dar alguns exhibits a fim de demonstrar a técnica do poeta: “An now to the abyss I pass/ of that unfathomable grass,/ Where men like grasshoppers appear,/ But grasshoppers are giants there” (E agora para o abismo eu passo/ daquele insondável gramado/ onde os homens são gafanhotos/ mas gafanhotos lá são gigantes); ou toda essa estrofe que é uma pedra de toque da poesia barroca: “The viscous air, wheres’ere she fly/ Follows and sucks her azure dye;/ The jellying stream compacts below,/ If it might fix her shadow so;/ The stupid fishes hang, as plain/ As flies in crystal overta’en;/ And men the silent scene assist/ Charmed with the sapphire-wingëd mist” (O ar viscoso onde ela voa/ Segue e suga sua cor azul/ O rio gelatinoso espessa-se abaixo/ Se puder fixar a sombra dela/ Imobilizam-se os peixes entorpecidos/ tal como as moscas ébrias no cristal/ E os homens assistem à silente cena/ seduzidos pela névoa, alada em safira):
Bosques, rios, prados, jardins são imagens de Maria, filha de Fairfax - isso na superfície, na denotação imediata do texto. Mas correspondem também à necessidade de conferir uma imagem organizada do mundo em desordem. É o pensamento de um poeta intelectual, que, inclusive, teve uma vida de atuação política e viu o inferno da luta pelo poder. Marvell, que nascera em 1621, embora estivesse em viagem por vários países, quando rebentou a guerra civil, trabalhou depois junto ao Governo de Cromwell, para o qual escreveu alguns poemas. Um deles, An Horation Ode Upon Cromwell’s Return from Ireland, constitui na opinião de inúmeros ensaístas, um dos maiores poemas políticos já feitos, com um dos seus notáveis touchstones: “Tis time to leave the books in dust,/ And oil th’unusèd armor’s rust” (É tempo de deixar os livros ao pó/ e de olear a armadura enferrujada).
A modernidade de Andrew Marvell pode ser aquela de toda a grande poesia, mas também reverte devido às constantes barrocas de hoje. Também aquela técnica de relacionar substantivos concretos a fim de projetar ideias ou sentimentos abstratos caracterizou grande parte dos principais poetas que rejeitam o empinar solene da dicção clássica. No caso de Marvell, temos uma poesia profundamente filosófica e de ideias sutis, elaborada sem rejeitar o fundamento da palavra em si. E isto também se consiste em produto da inteligência criativa que atualizou a sua obra diante das contingências do texto em nosso tempo.
Correio da Manhã
19/11/1967