Num conto de Guimarães Rosa, Substância, existe uma epígrafe dizendo que a linguagem é a coisa. Ontologia suprema - o óbvio básico. Nem a própria noção subjetiva ou convencional que se possui daquilo que é etiquetado como a realidade teria possibilidade de existir, de ser sentida, sem o instrumental linguagem. Como diz Cassirer - em An Essay on Man - mais do que apenas um animal racional, o homem é um animal simbólico. Ora, essa atividade simbólica ou de signos (significante, passeando logo por um dos termos-chave da dualidade saussuriana) é de natureza conotativa (relacional), como já observou Susanne Langer (Philosophy in a New Key), ao contrapô-lo ao mecanismo de transmissão dos meros sinais, que são denotativos e os únicos passíveis de serem apreendidos e usados pelos outros animais em geral (com exceção do golfinho, cujas experiências feitas, tanto nos Estados Unidos, como na União Soviética, demonstram a sua capacidade de assimilar a informação).
A persistência do primado da linguagem infere, no entanto, o instrumento e, aplicando essa coadunação ao terreno estético, aí permanece uma dissertação clara e simples de Ernst Fisher, em A necessidade da Arte. Ou na Odisséia no Espaço, isto vem sintetizado magistralmente por Clarke & Kubrick. Mas se o principal instrumento de linguagem na época da hegemonia da mecânica de Newton era a comunicação verbal, esta, com o advento do primado eletrodinâmico da segunda revolução industrial, foi perdendo, pouco a pouco, aquela posição. A ponto tal que, a partir de certa parte do século XX, as grandes especulações puras do homem não encontravam simplesmente, na linguagem verbal, a sua resposta instrumental. O logicismo discursivo, o arcabouço princípio-sem-fim, condenado tacitamente pela lei da relatividade, chegou ao impasse dentro de uma praxis geral. A arte (e aqui não incluímos o cinema, que inexiste no caráter artesanal e é uma forma de criação industrial), descompromissada dentro daquela gratuidade essencial que a qualifica, foi a primeira forma de atividade a dar sinal do turning point. Todas as suas categorias foram buleversadas e a prova reside na sequência infinda de modismos e vanguardismos (o ismo, aqui, não é pejorativo) que escorrem decênios a fio.
Mas se a arte, como pólo das especulações puras no sentido concreto deu sinal da crise, a filosofia, no pólo oposto, ou seja, das especulações puras no sentido abstrato, teria que corroborar. Pois a crise era a mesma. A linguagem verbal como eixo de literatura e filosofia vai-se partindo no papel integralizador de forma de conhecimento. Os signos icônicos são submetidos crescentemente a uma modalidade de expressão indireta (e, não, direta, artesanal) no alvorecer eletrodinâmico: cinema, rádio, TV, telstar, telégrafo, computadores, etc., com os mais variados sistemas de codificação analógica (fora, portanto, do logicismo discursivo). Aonde levar a especulação pura do pensamento, sem dominar um instrumento não mais discursivo, destituído do primado verbal? Qual o além do além de Heidegger? Este último, completando a série básica dos três Hs (Hegel, Husserl, Heidegger), chegou a uma maneira de se exprimir extremamente cerrada, quase incompreensível. Marx já é um clássico e não é, a rigor, um filósofo, no sentido intrínseco do termo. Idem, idem, neste século, aplica-se a Sartre, Merleau-Ponty ou Marcuse, grandes críticos ou intérpretes de filosofia, porém sem terem legado aquelas assim chamadas categorias puras do pensamento em função da atividade cognoscitiva. Heidegger, depois de ir parar nos pré-socráticos ou de ter parado diante da coisa - “a coisa coiseia” - fez com que o próprio instrumental linguístico desse a impressão de girar sobre si mesmo.
O que se aplica quantitativamente a poetas e romancistas, também se refere aos filósofos: de século para século, diminui o número dos “grandes pensadores”, dos arquitetos de categorias puras. O ensino de literatura e de filosofia, em qualquer estabelecimento, tornar-se-á abstração, obrigação ou passatempo inócuo, sem a noção de suas limitações que não saem das faixas ou culturais, ou históricas ou museológicas. É necessário, mas não escapa de um campo, cada vez mais estreitado, onde os horizontes para uma apreciação dinâmica do mundo físico ficam tortos ou nebulosos.
Neste momento sideral em que o conceito de ciências exatas torna-se, por seu turno, cada vez mais nebuloso, por que não institucionalizar, em lugar da filosofia, o estudo da epistemologia (exame e aferição do nível de não-contestação ou grau de certeza do conhecimento científico)? Pois esse mesmo conhecimento científico é que vai ganhando - na área aleatória, probabilística, topológica - uma abertura crescente de especulação pura, na medida, inclusive, em que um instrumental próprio de linguagem gera-se em seu âmbito. De nada vale estar-se minuciosamente a par do primeiro vagido filosófico de Platão, sem a apropriação global da realidade contingente. Certo que o homem, até por motivos biológicos, detêm sempre a sua forma de manifestação e de linguagem corpórea e verbal. Mas os dispositivos de projeção de sua capacidade de relacionamentos estende-se a alcances imprevisíveis para o que ocorria antes da autonomia da máquina. Essa autoprojeção, que já vai quase à Lua, é produto de uma estrutura mais complexa, incapaz de ser explicada ou manipulada apenas pelas valências da linguagem verbal. Esta é válida para toda uma atividade ensaística, do método sobre ou para alguma coisa. Mas a questão do método em si, dentro do paideuma contemporâneo - talvez já requisite um instrumental de linguagem que controle a dança das esferas, o ballet das estrelas. Esta, a ironia metafísica de uma nova metaciência - ou metalinguagem.
Correio da Manhã
01/12/1968