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Robert Desnos, poeta da palavra

“Somos os pensamentos arborescentes que florescem nos caminhos dos jardins cerebrais”. Cartão de visitas de Robert Desnos, um dos principais poetas da grande fase surrealista, que, dentro daquele movimento, sob o aspecto inventivo-experimental, talvez só encontrasse rival à altura na figura do próprio líder, André Breton. Desnos, assim como também ocorreu com Eluard e Aragon, voltou-se depois para uma fase mais humanista engajada e, por isso, boa parte de duas antologias de poemas cinge-se especialmente a tal fase ou ao período mais caracterizadamente surrealista, dos poemas em prosa. Tudo isso devido à sua participação decidida na resistência francesa, que lhe acarretou prisão e morte no campo de concentração, na Tcheco-Eslováquia, no campo de Teresina, recém-abandonado pelo SS com a proximidade dos aliados. Era 8 de junho de 1945.

***

Agora, na sua série de poesias em livros de bolso, a Gallimard relança Corps et Biens. E constitui publicação das mais importante, pois encorpa alguns dos momentos mais eficazes da poesia de vanguarda neste século, exatamente aquela fase onde os poemas projetam a transição entre dadaísmo e surrealismo. Inúmeros desses poemas, constantes de Corps et Biens, evidenciam uma pesquisa apurada do texto em si, e demonstram diversos recursos da verdadeira poesia moderna, ou sejam, espacialização e fragmentação de palavras, aliterações incessantes, trocadilhos, montagens, variações tipográficas, poemas telegráficos, violentação da sintaxe e das regras gramaticais, jogos permutacionais, etc. Desnos já tinha muito de alguns escritores de vanguardas em língua inglesa, como Cummings ou Joyce, e o que, nele, ainda poderia ser considerado como metáfora, brotava de um imagismo dos mais arrojados, a fazer empalidecer as Lowells & cos. A começar com uma delas,
touchstone, de abertura do Fard des Argonautes, com a adjetivação do substantivo: “les putains de Marseille ont des soeurs oceanes”. Ou então, em L’Ode a Coco: “pesadelo, seu bico negro mergulhará num crânio/ e dois grãos de sol sob a pele palpebrina/ sangrarão na noite sobre uma colcha branca”.
É difícil, num approach assim ligeiro, propiciar uma tradução adequada aos poemas mais inventivos ou radicais de Desnos, a começar também por este - Dialogue - que é um modelo antológico de achado e concisão:
- Rien ne m’interésse.
- Rie, em almant, Thérèse.
Há uma peça que, somente o título, já confere a medida da criação, P’Oasis (poesia + oásis), onde também avultam as frases intercaladas com trocadilhos, letras dispersas, sinais gramaticais, números e até a transcrição de trechos de pautas musicais e a terminar com a indagação: “somos cowboys do Arizona num laboratório/ ou cobaias mirando o horizonte como um labirinto?” Ao mesmo tempo, a Chanson de Chasse fornece um exhibit do delírio assonante, aliterativo: “La chasseresse sans chance/ de son sein choie son sang sur ses chasselas/ chasuble sur ce chaud si chaud sol/ chat sauvage/ chat chat sauvage qui vaut sage/ chat sage ou sage sauvage...” e daí por diante. E encontrando uma comparação ainda mais radical a ser extraída do Elégant Cantique de Salomé Salomon (“Où est Ninive sur la mammemonde?”), a terminar com a seguinte construção:
Aime haine
Et n’aime
haine aime
aimai ne
M N
M N
M N
M N
Au Mocassin Le Verbe, uma mostra de outra espécie das distorções de Desnos, agora passível de tradução imediata:
Tu me suicidas, tão docilmente.
Eu te morrerei, porém, num dia.
Eu conheceremos essa mulher ideal
e nevarei lentamente sobre sua boca.
E choverei na certa mesmo que eu entardeça,
mesmo que eu faça bom tempo.

Nós amareis tão pouco nossos olhos
e cairá esta lágrima sem
razão, certamente, e sem tristeza.
Sem.

Em Le Bonbon, projeta-se uma experiência algo sonorista, através da repetição calculada das palavras, mas sem perder a pista semântica-discursiva: “Eu eu sou sou o o rei rei/ das montanhas/ tenho bons bons dodóis bons bons olhos olhos/ faz calor calor/ tenho nariz/ tenho dedo dedo dedo dedo dedo em em/ cada mão mão/ tenho dente dente dente dente dente dente dente/ e assim por diante. Enquanto isso, um poema como C’Était un Bon Copain constitui exemplo notável de fluidez do cantabile, digno dos grandes especialistas no ritmo versificado: “Il avait le coeur sur la main/ et la cervelle dans la lune/ C’Était um bon copain”.

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Todavia, os poemas mais ainda rigorosamente antológicos de RD na escala do processo são aqueles dois sob o título de um nome misterioso, RROSE SÉLAVY, que, no entanto, sonoramente, já denota uma frase (rose, c’est la vie, por exemplo). O menor deles, com o adenda de uma vírgula e ETC. no título, é praticamente intraduzível. O som de todos versos é idêntico, mas o significado varia. Vale a pena transcrevê-lo na íntegra: “Rose aissele a vit./ Rr’ose, essaie là, vit./ Rôts et sel à vie./ Rose S, L, have I./ Rosée, c’est la vie./ Rrose scella vit./ Rrose sella vit./ Rrose sait la vie./ Rrose, est-ce, hélas, vie?/ Rrose aise hela vit./ Rrose est-ce aile, est-ce elle?/ Est celle/ AVIS/”. Embaixo do texto, como espécie de inscrição e assinatura, surgem, em tipos bem mais avantajados, as letras S., E., C., formando um quadrado sobre “Charles Quint Faux Défunt (Carlos Quinto Falso Defunto).
O outro poema consiste numa forma de texto, delimitado em seus itens. São notações, frases contendo expressões do humor, trocadilhos, referências a outros poetas ou lugares ou lendas, etc., numeradas, de 1 até 150. Cada notação não oferece continuidade linear, em seu significado, àquela que a antecedeu. Veja-se alguns exemplos delas, já, aqui, vertidos para o português: 4 - A solução de um sábio é a poluição de um pagem?; 6 - Rross Sélavy inscreverá por muito tempo o cadastro dos anos no quadrante dos astros?; 10 - Rrose Sélavy pergunta a si se a morte das sazões faz tombar a má sorte sobre as mansões; 11 - De-me o meu arco bérbere, disse o monarca bárbaro; 27 - O tempo é ágil águia dentro de um templo; 41 - Benjamin Péret só toma um banho por ano; 96 - O ato dos sexos é o eixo das seitas; 119 - Prometheu a mim amor!; 130 - Georges Limbour: Para os normandos o norte mente.
Essas sequências, às vezes entremeadas com subtítulos, forjam uma enumeração caótica análoga àquela batizada pela linguista Leo Spitzer, ao se referir à sucessão de palavras. Só que em Rrose Sélavy, se trata da enumeração de frases. Uma tensão de texto no encadeamento superficialmente aleatório, que, no todo, cria uma espécie de cartilha ou fabulário fragmentado, onde iriza-se as virtualidades dada-surrealistas.
Robert Desnos abria uma brecha maior por onde se avolumariam outras experiências posteriores com as relações entre palavras. Como dizia Mallarmé, “a poesia não é feita com ideias e, sim, com palavras”. RD soube explorar, na palavra, inúmeras de suas dimensões válidas para a criação: ajudar a libertar a poesia do estreito caminho puramente discursivo-metafísico.

Correio da Manhã
09/06/1968

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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