Todo grande fazedor de frases é um grande prosador, Nelson era fatal como um provérbio
Um belo dia, compro o romance de Nelson Rodrigues, O casamento. Acabara de ser publicado com uma tarja vermelha: "Só para adultos". Livro maravilhoso, uma tremenda tragédia matizada de comédia, o leitotor não pára de rir.
Tudo bem. Tudo bem? Dias depois, ouço e vejo a ridícula notícia de que o ministro da Justiça proibira o livro em todo o território nacional. Mas como ainda estávamos no governo Castelo Branco e havia então liberdade de imprensa (era uma espécie de ditadura híbrida), não padeci de dúvidas. Fui para a máquina e escrevi um artigo intitulado O casamento e a Revolução. Nesse artigo, além de pôr Nelson nas nuvens, concluía que O casamento era muito mais revolucionário do que a revolução que o proibia. Foi publicado no Correio da Manhã.
Com o recorte do artigo no bolso do paletó, Nelson foi ao Maracanã e lá perguntou a Francisco Pedro do Couto quem era o autor, queria conhece-lo. Couto, meu amigo de longos anos, encarregou-se do encontro, que foi em meu apartamento. Acompanhado do mesmo Couto e de Marcelo Soares de Moura – a quem também conheci na hora –, ele abre um sorriso afável e me cumprimenta, pronunciando meu nome por inteiro. Esse abrir de porta abriu uma amizade fulminante – era como se nos conhecêssemos desde a outra encarnação.
Daí, passou-se para o quase dia-a-dia de encontros e telefonemas. Graças a uma idéia de Newton Rodrigues, então redator-chefe do Correio da Manhã, Nelson começa a escrever as suas Memórias, que mais tarde, em O Globo, se transformariam nas Confissões. Então, como já o eram inúmeros personagens vivos destas plagas, tornei-me também seu personagem – o “irmão íntimo”, vítima das gozações amistosas.
Possuía uma vaidade atômica, mas ela pouco aparecia em sua conduta. Nelson era quase monocórdio em seu estar. Nunca o vi, seja mediante expressões verbais ou faciais, manifestar tristeza ou fúria. Só saía do natural para o riso, o humor. E aqui me vem à memória um exemplo relevante desse complexo humor/vaidade (pode ser auto-estima). Fomos assistir à sua peça, Os sete gatinhos, no Teatro Miguel Lemos, com Fregolente no papel principal. Pois bem: na plateia, quem mais ria era o próprio Nelson Rodrigues.
Certa vez contou-me uma história real, altamente trágica, que poderia ter virado teatro. Um rapaz suburbano, desempregado, namorava uma jovem (evidentemente virgem). Disse-lhe o pai dela que o namoro só poderia transformar-se em noivado no dia em que ele achasse um emprego. Foram anos de idílio, até que ele aparece na casa do sogro com carteira assinada. Veio o noivado, e deste para o casamento foi um pulo. “Sabe”, perguntou-me Nelson, “o que que aconteceu na lua de mel? Ele matou a noiva”. Delírio do desejo reprimido.
Noutra ocasião, narraram-lhe mais um fato real que o impressionou muito; e ele me disse que pensava transformar em crônica, ou mesmo em peça. Um casal de meia idade vivia às turras. Aí, diz um dia o marido para a mulher: “Você é virtuosa, mas a vida com você é um inferno!” E continua: “Enquanto isso, o nosso vizinho que mora aqui ao lado é um corno; é um corno, mas quando chega em casa é um rei. Eu invejo esse vizinho!” Nessa altura, fez até menção de estrangular a mulher, porém ficou vermelho, apoplético e caiu na cadeira, ofegante.
No início de nossa amizade, nossos almoços eram geralmente no restaurante Nino, em Copacabana. Muitas vezes lá estava outro “irmão íntimo” mais antigo, Hans Hanningsen, o Marinheiro Suess. Nelson sempre reclamava a ausência de pão francês (o óbvio ululante) e também quase sempre pedia filé com fritas “feitas na hora”.
Depois, veio a época do Cartum, restaurante de propriedade de seu filho Jofre. Era tácito; todas as quartas-feiras lá estávamos naquela quase esquina de Uruguai e Conde de Bonfim: Nelson, eu, Couto, Marinheiro, Abelard França, Villas-Bôas Corrêa, Nicolau Manfredi, Pimenta (dono da Churrascaria Gaúcha), um mineiro chamado Hamilton, que vinha das Alterosas prometendo coisas mirabolantes, e muitos outros que apareciam eventualmente, como Canor Simões Coelho ou o ator Jorge Dória.
A seguir, foi a fase dos almoços no Automóvel Clube, na Rua do Passeio, quando surgiram Elio Gaspari e Marcos Sá Corrêa.
Ao mesmo tempo, Jofre inaugurava O bigode do meu tio, em Vila Isabel, badaladíssimo por Nelson, que o frequentava habitualmente pela hora do jantar. Nesse restaurante foram organizados alguns eventos, havia show e entre os cantores de praxe figurava Cauby Peixoto e a Perla paraguaia. O Marinheiro Sueco era especialista em Noche de ronda, de Augustín Lara.
Bem, agora vamos para o futebol. Por acaso, seus amigos que gostavam do “violento esporte bretão” (a expressão não é dele) – eu, Couto, Marinheiro, Marcelo Soares de Moura (com quem Nelson ia sempre ao Maracanã no que chamava “a doce carona”) – éramos também tricolores. Nelson vibrava, torcia muito. Diante da televisão quase enfiava a cara no vídeo. Foi o cronista mais torcedor que houve; não admitia isenções. E isso ele transmitia, num outro plano, para o relacionamento entre o escritor ou o artista com a sua obra: nada de modéstia ou falsa modéstia, cada um tem que se julgar gênia. Senão, pra que escrever ou pintar?
Do mesmo modo, louvava e exaltava o fato de ser repetitivo. Achava que a repetição constituía um elemento importante na vida e na arte. Por exemplo: quando vinha ouvir música comigo, eu já preparava sempre o mesmo repertório: Dime que si, com o Dr. Alfonso Ortiz Tirado; a Barcarola, dos Contos de Hoffmann; Donde estás corazón, com Tito Schipa; Di quella pira, do Trovador, com Caruso. Aliás, graças a essa ária deu-se o seu reencontro risonho com Paulo Francis. Havia uma reunião aqui em casa, mas Nelson, implacável, ficou num canto a ouvi-la. Nisso Paulo Francis aproxima-se, a fim de encontrar também os trinados de Caruso. Ele, sentado, olha para cima e diz: “Que coisa linda, Paulo Francis, você também gosta de ópera?” Francis sorri e concorda. Dias depois, Nelson diria numa Confissão: “A arte dramática nos separou, a arte lírica nos uniu”.
Enfim, resta falar do Nelson político, do “reacionário” (um de seus livros, uma antologia das Confissões, tem intencionalmente o título de O reacionário), daquele que inventou a expressão “marxista de galinheiro”. Pois apesar de tudo isso lutou para tirar pessoas da prisão, após o AI-5. Testemunhei, no Nino, o seu protesto perante o então todo-poderoso general Afonso de Albuquerque Lima contra a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil. E todos os dias ele ia religiosamente visitar o seu amigo Hélio Pelegrino, preso no regimento Caetano de Farias. Eu também ia lá visitar Oswaldo Peralva, diretor do meu jornal, o Correio da Manhã. Lá também, juntamente com Hélio e Peralva, estavam Zuenir Ventura e Gerardo Mello Mourão. Um dia, Nelson me telefona eufórico: “Afinal, consegui soltar o Hélio Pelegrino, mas não foi fácil; o Sizeno (general Sizeno Sarmento, então comandante do I Exército) não resolvi nada e quem decidiu foi o general Assunção Cardoso, chefe do seu estado-maior.” Aliás, pedi também por aquele seu amigo, que conheci em sua casa, o Zuenir”. “O general perguntou se eu me responsabilizava pelos dois; disse que sim”. “Que tal o Zuenir?” Respondi na gozação: “Esse solta bomba em creche”. “Não brinca! Não brinca!” disse ele.
Estes são alguns flashes do convívio com Nelson Rodrigues. Contatos com um amigo interessante, um ser humano enriquecedor e, em paralelo, simples e complexo ao mesmo tempo.
E com uma obra inusitada. Mas, apesar de seu fabuloso teatro, desde Mulher sem pecado (com Olegária, na cadeira de rodas, como personagem mais dinâmico no palco), passando por Vestido de noiva, Álbum de família, Toda nudez será castigada ou Dorotéia (talvez sua maior peça), temos a impressão de que sua prosa ainda é mais importante. Seja nos romances, seja nas crônicas e mesma na Sombra das chuteiras imortais está lá o grão-senhor do humor, da imagem, da metáfora e, especialmente, o fazedor de frase. Todo grande fazedor de frases já é um grande prosador (ou poeta). Como disse Telmo Martino, ele (Nelson) “pode ser fatal como um provérbio”.
Jornal do Brasil
17/10/1992