Além de seus elementos mais conhecidos, como ciganos e toureiros, a lírica lorquiana apresenta um outro lado, o da economia verbal e da inventividade imagética.
“Azul onde a nudez do vento vai quebrando
os camelos sonâmbulos das nuvens vazias”
“E um horizonte de cães
ladra bem longe do rio”
“Silêncios de goma escura
e medos de areia fina”
“O vento dobra despido
a esquina da surpresa”
“Ninguém sabia que martirizavas
um colibri de amor entre teus dentes”
“Teu ventre é uma luta de raízes”
“A verde lepra do ruído”
“Amor, amor, um vôo da corça
pelo peito sem fim lá da brancura”
Esta breve montagem de “pedras de toque” corresponde a uma tentativa de demonstrar o aspecto que ficou marcante na obra poética de Federico Garcia Lorca. “Beleza objetiva, beleza pura, livre dos anseios do pânico”: o que ele assim dizia, num ensaio sobre Góngora, pode-lhe retornar como bumerangue eufórico, inventivo. Lorca: sentido de melopéia, pujança e riqueza de fanopéia, com o arrojo de metáforas insólitas, traçados verbais barrocos, desaguando num aparente filão surrealista.
Mas não há desvarios, nem radicalismos. Em seus poemas, nada existe de implícito, no que se entende por tema, que a forma não explique. O cunho surrealista de sua imagética peculiar permanece contido pela tendência racionalizada de organização. E, aí, paira a índole tátil dos sentimentos e sensações, do visto e/ou meditado, em suma, a emoção objetivada mediante a nomeação dos dados concretos, típica também de um John Donne ou do nosso João Cabral de Melo Neto. Assim, via “concreção”, ficam, nele, exprimidas as “ideias”.
Um dos exemplos especialmente marcantes dessa concreção está no segundo verso da “casida” do “Sonho ao Ar Livre”:
“Pavimento infinito. Mapa. Sala. Harpa. Alba”.
onde a sucessão de quatro palavras paroxítonas de duas sílabas, sempre com a vogal “a”, propicia exatamente, em termos isomórficos, a concepção de amplitude.
Economia e invenção
Ao lado, no entanto, do “Romancero”, do “Poeta em Nova York”, dos gitanos e toureiros, além da sensualidade, ou aquele dos sonetos, das “casidas” e das “gacelas”, temos uma outra face de Lorca, com um tipo de elaboração peculiar na economia de elementos verbais e de alta consubstanciação inventiva. É o Lorca do poema-pílula, da peça-minuto, dos “flashes” insólitos, em suma, da síntese. Surgem então os recursos de pontuação de maneira atípica, do “enjambement”, o apelo às variações tipográficas e à técnica de repetição - esta última, uma pseudo-redundância que emite o nível funcional das palavras. São composições desprovidas da tradicional linearidade da sintaxe discursiva e que se aproximam da estrutura analógica dos haicais japoneses. Foram realizadas desde as suas “Canciones” e “Primeras Canciones”, até os “Poemas Póstumos”. E nesse sentido constituem uma parte de sua obra que oferece paralelismo com parte da obra de outro grande poeta norte-americano, William Carlos Williams, seu contemporâneo.
Nesse mesmo teor de Federico, a coisa mais radical já é “Cena”, duas tomadas apenas:
“Altas torres.
Largos rios.”
Exemplos e comentários
“Raio” (uma espécie de haicai)
“Tudo é leque.
Irmão, abre os braços.
Deus é o centro.”
“Remansos”
“Ciprestes.
(Água estagnada)
Álamo.
(Água cristalina)
Vimeiro.
(Água profunda)
Coração.
(Água de pupila)”
No poema acima, também a abolição do caráter discursivo. Há uma disposição racionalizada no espaço - ou seja, ordenação ideográfica de quatro palavras (substantivos), cada uma delas contendo, logo abaixo, a palavra “água” (também substantiva) qualificada por um adjetivo; a não ser na quarta e última nomeação, onde o objetivo qualificativo cede lugar a uma referência possessiva: “de pupila”, aliás de acordo com a denotação animal da palavra “coração”. O referente vegetal está presente nos três primeiros substantivos - “ciprestes”, álamo e vimeiro - que trazem a agregação de uma ideia mineral, variável através da qualificação dos adjetivos. No último caso, “água” vem subordinada a “pupila” e perde a condição de agente de designação mineral, em favor da referência animal, em consonância com “coração”.
“Flor”
“No imponente carvalho
da chuva, caía.
Oh a lua redonda
sobre os ramos brancos!”
(poema breve/ várias contraposições/ o título vs. o texto/ um só verbo/ metáfora por elipse/ luaflor).
“Arlequim”
“Teta lacre do sol
Teta azul da lua.
Torso metade coral
meio prata e penumbra.”
(montagem de imagens. a fanopéia pura segundo a concepção de Ezra Pound/ o título não é apenas uma etiqueta e, sim, mais um elemento significante, como nos quadros de Paul Klee/ o texto, por seu turno, é análogo ao cubismo).
Já um poema como “A Cruz”, dá bem a ideia de um recurso de transferência de sentido por intermédio da visualização estática que se transforma num quadro em movimento - o que era fim tornou-se infinito, quando a cruz mira-se no açude: (é só comprovar o paralelismo dos parênteses).
“A cruz.”
“(Ponto final
do caminho.)
Mira-se no açude.
(Pontos de reticência.)”
“Réplica” é mais uma miniatura poética a denotar outro exemplo da transferência imagem vs. som, com tomadas cineverbais.
“Um pássaro tão só
canta.
O ar multiplica.
Ouvimos por espelhos.”
Em “Noturno Esquemático”, encontramos nove substantivos três a três por linhas e, três ligados pela conjunção copulativa e, sendo que apenas o último deles, “solidão”, é abstrato. Ligeiramente distanciada no espaço, uma frase em contraposição retoma o título.
“Funcho, serpente e junco.
Aroma, rastro e penumbra.
Ar, terra e solidão.
(“A escada chega à lua)”
“Crótalo” traz a repetição da palavras-título por três vezes, em duas camadas sonoras a forjar efeitos de onomatopeia (soar da castanhola). Uma das melhores “trouvailles” de Lorca nessa modalidade de experiência:
“Crótalo.
Crótalo.
Crótalo.
Escaravelho sonoro.
Na aranha
da mão
riscas o ar
cálido
e te afogas em teu trino
de pau.
Crótalo.
Crótalo.
Crótalo.
Escaravelho sonoro.”
Enfim, o antológico “Pórtico” - imagem/ montagem/ paisagem:
“A água
toca seu tambor
de prata.
As árvores
tecem o vento
e as rosas tingem-no
de perfume.
Uma aranha imensa torna a lua estrela.”
Lorca e sua luz: sobra o mínimo múltiplo comum da poesia.
Folha de S.Paulo
17/08/1986