“Minha alma caminha comigo - forma das formas”. No universo literário, dentro daquilo que Ezra Pound denominada invenção (a descoberta e/o formulação de um novo processo), se o século passado determinou sob a aura de Mallarmé (Un Coup De Dés), o século atua ainda permanece sob a aura de James Joyce: Ulysses e, principalmente, Finnegans Wake. São os textos mais instigantes e radicais em matéria de elaboração estrutural no âmbito do que ainda se possa entender como prosa, onde filetes de fábula ganham lampejos de cosmovisão, obtidos pura e simplesmente através do manuseio das palavras em relação e de suas potencialidades “verbivocovisuais”.
No entrecruzar ou superposição de faixas de um amplo repertório de significados, seja de arte, política, história, filosofia ou a própria literatura, há o monólogo interior, o stream of counsciousness, a montagem e aglutinação de vocábulos, as palavras-valise, em suma, como ele mesmo dizia, "panorama of all flores of speech".
Tudo isso fruto de um trabalho incessante, dentro de uma vida extremamente tumultuada por problemas familiares, sentimentais, financeiros e de saúde - neste último caso, especialmente os de visão; estava quase cego quando, em 13 de novembro de 1938, terminou de escrever o Finnegans Wake (Finnicius Revém, segundo versão de Augusto e Haroldo de Campos). Sem falar nos deslocamentos entre várias cidades, a começar por Dublin, onde nasceu, além de Trieste, Zurich, Paris, Londres, etc.
Uma intuição de desventura, compensada pela obra, como, por exemplo, anuncia o poema Bahnhofstrasse, escrito em Zurich - 1918: “Ah estrela do mal! estrela em dor Mocidade vital não mais retorna Nem sabe o conhecer dessa vivência Dos signos que me zombam enquanto sigo”
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James Joyce nasceu em 2 de fevereiro de 1882, em Rathgar, subúrbio ao Sul de Dublin, Irlanda. Aos 18 anos de idade, depois de ganhar 12 guinéus da Fortnightly Review, em pagamento por um artigo sobre Ibsen, vai a Londres com o pai, levando 11 (deixou um com a mãe), e volta declarando que não é a poesia, mas, sim, o music-hall o verdadeiro crítico da vida. Escreveu então uma peça que ficou perdida: A Brillant Career (Uma Carreira Brilhante).
Em fins de 1902, parte para Paris, sob pretexto de estudar Medicina, porém, segundo Jean-Jacques Mayoux, topou com algumas mulheres e com a literatura. Foi aí que leu Les Lauriers Snt Coupés, de Edouard Dujardin - provavelmente sua primeira influência quanto ao monólogo interior. No ano de 1904, ocorrem dois fatos importantes: começa a escrever Stephen Hero, que somente seria publicado em 1944 e conhece aquela moça que viria a ser sua companheira durante o resto da vida, Nora Barnacle - o casamento deles consumou-se apenas 27 anos depois, em Londres.
Em 1907, publica Chamber Music (Música de Câmera), seu primeiro livro, contendo poemas com aquela leveza musical a trazer ressonâncias de tempos atrás, do século XV, ou, logo após, de Wyatt, Campion ou Waller. Já possuía o senso do mot juste (Flaubert) nesses poemas aparentemente despretensiosos, mas, ao mesmo tempo, começava a pensar em Ulysses. A seguir, em 1914, a série de contos de Dubliners. Esse livro encontrou uma sequência de reações na Irlanda, que chegaram até à queima de uma edição inteira. (No Brasil, lançado em tradução de H. Trevisan - 1964).
Nessa época, iniciou-se a ligação com Ezra Pound, que apostava radicalmente em seu talento. Em carta a Amy Lowell, em 1914, Pouns já dizia que Joyce, ao lado de D. H. Lawrence, era o mais poderoso prosador entre os jovens. Um ano depois, em carta a H. L. Mencken, Pound repetia: “o prosador sobre o qual estou realmente interessado é James Joyce”.
Ainda em 1915, quando foi de Trieste para Zurich, graças a Pound, Yeats e Gosse, recebeu uma dotação de 65 libras do Royal Literary Fund, da Ingleterra. E há outra carta de Pound, a Harriet Monroe, pedindo que pagasse rápido a colaboração de Joyce por um ou dois poemas na revista Poetry. Enfim, em 1915, ainda Pound chama a atenção de Harriet Shaw Weaver, diretora da revista The Egoist sobre JJ. A partir daí, ela viria a proporcionar o Joyce uma permanente ajuda financeira.
No ano de 1917, Joyce publica seu primeiro romance, com evidentes conotações autobiográficas: A Portrait of the Artist as a Young Man (Retrato do Artista Quando Jovem), traduzido, aqui no Brasil, pelo escritor José Geraldo Vieira, em 1945, para a Editora Globo, de Porto Alegre. A sua peça, Exiles, vem a público no ano seguinte (1918). Pelo que se sabe, foi encenada em Londres, tempos depois, em 1926.
Trata-se do último e grande adeus a Ibsen. O exílio do herói (literário) em texto e entrecho secos; a trágica contradição entre o amor e a liberdade e integridade espiritual. Décor funcionalmente trivial, poucos personagens. Francis Fergusson analisa bem o contexto e lembra as definições de Stephen Daedalus sobre piedade e terror:
“Piedade é o sentimento que prende a mente na presença de qualquer coisa que seja grave e constante no sofrimento humano e a une com quem padece. Terror é o sentimento que prende a mente na presença de qualquer coisa que seja grave e constante no sofrimento humano e a une com a causa oculta”.
Nessa mesma época, principiou a escrever Ulysses e, em 1918, publica o primeiro episódio do romance na Little Review. Em outubro de 1920, o número referente a julho-agosto dessa mesma revista, a conter o trecho de Nausicaa, é apreendido e confiscado sob alegações como “obsceno”, “silencioso”, “lascivo”, “indecente”, “repugnante”, etc. As editoras Marian Anderson e Jane Heap, condenadas a pagar 100 dólares de multa. Enfim, depois de perseguições e atropelos, Joyce termina o livro em 1921 e que veio a ser publicado por Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Co.
As reações foram inúmeras. George Orwell disse que Joyce era uma espécie de poeta e pedante elefantesco. H. G. Wells, em carta ao autor, declarava que a obra era uma experiência extraordinária, que possuía fiéis e adeptos, mas, para ele, constituía um impasse. Edmund Gosse considerou Ulysses especulação cínica sobre a imoralidade pura feita por uma espécie de Sade, porém pior escritor.
Mas, a 6 de dezembro de 1933, em Nova Iorque, ocorre a famosa decisão do juiz John M. Wolsey, liberando a obra e estipulando, entre outros argumentos, que a leitura integral não conduz à excitação do instinto sexual, nem a pensamento luxuriosos. Pelo menos, algo de água na fervura daquele período. Com o ocorrer do tempo, Ulysses passou a atravessas inúmeras dissecações e interpretações, foi traduzido para várias línguas, culminando com a que Antonio Houaiss realizou, para o português, em 1965.
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Dez de março de 1923 - etapa histórica para a literatura: Joyce começa a escrever Finnegans Wake, que só virá acabar mais de 15 anos depois, em 13 de novembro de 1938. Durante esse interregno, denominava o seu exercício de Work in Progress (obra em progresso). Em 1924, publicava os primeiros fragmentos do WP e, assim, prosseguiu, em 1926, na revista Transition.
Em 1927, é lançado o seu livro de poemas, Pomes Penyeach. Em 1928, publica o mais famoso dos seus trechos de Finnegans Wake: Anna Livia Plurabelle. E foi assim apresentando outros trechos no decorrer do trabalho, sendo que, no meio disso, em 1936, saíram editados os seus Collected Poems. Até que, em 30 de janeiro de 1939, recebe da Faber and Faber o primeiro exemplar do Finnegans, que viria a público em 4 de maio do mesmo ano.
“Riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias” (trad. de Augusto de Campos), dessa forma começa o livro, com a parte final de uma frase, cujo início está no fim do mesmo livro: “a via a uma a una amém a mor além a”. É a estrutura circular, inspirada também nas teorias do filósofo Giambattista Vico (citado ali, logo de saída), o homem da ideia do ricorso; em decorrências, Finnegans Wake pode ser lido a partir de qualquer trecho, ou atacado por várias tomadas ao acaso, como um mobile.
O sonho de Mallarmé era controlar o acaso; o objetivo de Joyce era idêntico, mas através da dissolução do acaso pela própria exuberância de seus elementos. David Hayman, em Joyce et Mallarmé, estabeleceu comparações entre a obra dos dois inventores. Como dizia Harry Levin, o romance se desenvolve entre Joyce e a linguagem. E Marshall McLuhan, desde 1951, em The Mechanical Bride, já colocava a obra de Joyce em todos os planos de instigação: “você gosta de Al Capp? Então você gostará de Finnegans Wake”. Em War and Peace in the Global Village, boa parte do texto é acompanhado de citações laterais do Finnegans. Como dizia, trata-se de “retribalização elétrica do Ocidente”, de acordo com a sua concepção do casamento da eletrônica com a biologia. E bem exemplificado noutra transcrição de FW: “what all where was your like to lay the cable...”.
Mais um dado histórico. As primeiras traduções em português, de trechos do Finnegans Wake, por Augusto e Haroldo de Campos, foram lançadas aqui no Jornal do Brasil, em 15 de setembro de 1957 e, logo apéos, em 29 de dezembro de 1957 - no também histórico Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que, enquanto existiu, facultou a divulgação de textos de e/ou sobre, não só Joyce, mas Pound, Mallarmé, Cummings, poesia concreta, dadaísmo, futurismo, surrealismo - enfim, uma fase de intensa criação.
Leitura permanente do Finnegans, até hoje. Não começa, nem acaba nunca; a fusão entre relativo e infinito. O estudo básico de penetração do Finnegans é o Skeleton Key to Finnegans Wake, de Joseph Campbell e Henry Morton Robinson, lançado em 1947. Ali se diz, no abrir da introdução: “poderosa alegoria da queda e ressurreição da humanidade”. E também, aqui no Brasil, a edição da Perspectiva, de 1971, Panorama do Finnegans Wake, de Augusto e Haroldo de Campos. James Joyce - 100 anos? - fim sem fim.
OBRAS
1907 - Chamber Music (poemas)
1914 - Dubliners (contos)
1917 - Retrato do Artista Quando Jovem (romance) - traduzido no Brasil, em 1945, por José Geraldo Vieira
1918 - Exiles (teatro)
1922 - Ulysses (romance) - traduzido no Brasil, em 1945, por Antonio Houaiss
1927 - Pomes Penyeach (poemas)
1936 - Collected Poems (poemas)
1939 - Finnegans Wake (romance)
1944 - Stephen Hero (romance)
1957 - The Letters of James Joyce (correspondência editada por Stuart Gilbert)
1958 - The Critical Writings of James Joyce (artigos e ensaios)
1966 - Letters - volumes II e III (correspondência)
1968 - Giacomo Joyce (texto inédito, anterior a Ulysses, editado por Richard Ellmann)
BIBLIOGRAFIA
Stuart Gilbert, James Joyce’s Ulysses - Vintage Books Inc., 1930
Harry Levin, James Joyce - A Critical Introduction - New Directions, 1941
Louis Gillet, Stèle Pour James Joyce - Edtion du Sagitaire - 1946
Joseph Campbell e Henry Morton Robinson, Skeleton Key to Finnegans Wake - Faber and Faber, 1947
Edmund Wilson, Axel’s Castle - Charles Scribners & Sons - 1950
Ezra Pound, The Letters of Ezra Pound - Faber and Faber, 1951
Ezra Pound, Literary Essays - Faber and Faber, 1954
Adaline Glashenn, A Census of Finnegans Wake - Northwestern Universitt Press, 1956
David Hayman, Joyce et Mallarmé - Lettres Modernes, 1956
J. I. M. Stewart, James Joyce - Longmans, Green & Co., 1957
Jean Paris, James Joyce “par lui-même” - Editions du Seuil, 1957
Michel Butor, Esquisse D’Un Seuil Pour Finnegan - in La Nouvelle Revue Française, 1957
Jean-Jacques Mayoux, Joyce - Gallimard, 1965
Augusto e Haroldo de Campos, Panorama do Finnegans Wake - Editora Perspectiva, 1971
Jornal do Brasil
31/01/1982