Este ano, de 1972, registra o quarto centenário do nascimento de um dos maiores poetas assinalados pela história: John Donne. A data exata do nascimento, aliás, permanece-se ainda como incógnita; sabe-se que foi durante o primeiro semestre de 1572, em Londres - onde também morreu, em 1631, havendo sido enterrado na Catedral de São Paulo, do qual foi Deão.
Donne - um dos ápices da poesia cerebral. Inventor de ritmos, da densidade coloquial, aquele a quem o próprio e um dos grandes contemporâneos, Ben Jonson, considerava “sob alguns aspectos, o primeiro poeta do mundo”. Ficou sendo o ponto máximo de referência da assim chamada escola dos “poetas metafísicos”, batismo do Dr. Johnson (Samuel), grupo que, além dele, compreendia outros grandes nomes, como George Herbert, Henry King, Abraham Cowley, Lord Herbert of Cherbury, Henry Vaughan, Thomas Garew, Richard Crashaw, John Cleveland, Aurelian Towshend, Thomas Traherne e até o Shakes peare do antológico A Fênix e a Pomba (The Phoenix and Turtle).
De origem católica e, mais tarde, havendo tomado ordens, transformou-se também no maior sermonista (preacher) de sua época. Os seus sermões, assim como os poemas, gozaram do mérito de estudos literários e estilísticos. E tudo, desde o começo, marcou o intelectualismo, até mesmo o cinismo, de sua obra. A mãe de Donne era filha de Sir Thomas More. Os tios foram jesuítas (um deles, tradutor de Sêneca), que morreram no exílio. Antes de se dedicar à vida religiosa, além dos estudos e do aculturamento, a biografia já denotava uma existência movimentada: acompanhou Lord Essex, na expedição a Cádiz e aos Açores, foi secretário de Sir Thomas Egerton, de quem, em segredo, esposou uma sobrinha, Ann More, então com 17 anos, o que lhe valeu o repúdio e o ostracismo. Depois, decorridos mais de dez anos de um ciclo de provações, voltou às boas graças e aderiu ao anglicanismo. Dos seus escritos, muito pouca coisa publicou em vida. Mas o tempo restituiu a glória.
Após a morte, Donne e os metafísicos passaram também pelo ostracismo literário, até que a crítica moderna viesse a refazer a história. Donne, a partir da terceira década do século atual, tornou-se um dos poetas mais estudados, interpretados, discutidos, louvados. A partir dos trabalhos de Eliot e Pound amontou-se uma infinidade de ensaios e exegeses: William Empson, Cleanth Brooks, Mário Praz, Joan Bennett, Helen Gardner, Rosamund Tove, Alfred Alvarez, Michel Butor, Herbert Grierson, C. S. Lewis, Pierre Legouis, etc. No Brasil, sabe-se da importância a ele conferida por João Cabral de Melo Neto e os poetas concretos.
A poesia dialética. Não mais o poeta mero cantor da corte (songs, canzone), apenas “musical”. Uma obra pensada, culta. Donne inovou na área semântica, além daquela da técnica do verso: trouxe elementos de Ptolomeu ou Copérnico, da Geografia, Cartografia, Matemática, Filosofia, Teologia, Cultura Clássica. Imagens poderosas, insólitas, para um jogo sutil, complexo, de conceitos. Nada da autonomia simples do ornamento barroco. Platônico ou frontalmente erótico nos poemas de amor, um tema já, na época, tão velho (pois eterno) e renovado em meditações requintadas. Por isso mesmo, disse Alfred Alvarez, em The School of Donne: “ o primeiro intelectual realista na poesia inglesa”.
Era tão “difícil” para os períodos posteriores, que foi excluído da famosa antologia de F. T. Palgrave e, só depois, reaparecendo quando passou a ser organizada por Oscar Williams. Mas era aquele que escreveu Biathanathos, um tratado a respeito do suicídio: para ele, o suicídio não era um ato de desespero, mas última esperança de conhecimento, como método de liberar o espírito. E era quem dizia que a mudança consistia o berço da vida. Quem contrapôs a lucidez à virtude. Quem defendeu a inconstância da mulher.
Léon-Gabriel Gros em seu estudo sobre a obra de Donne - edição Pierre Seghers, da série dos escritores de ontem e de hoje - concretizou várias observações de interesse: intelectualizou a vida sexual - criou o amor-conhecimento - realizou a crítica do amor, do comportamento feminino - e, principalmente, o “anti-Pètrarca”, “desmistificador do amor”, “um não-figurativo da sensibilidade”. Donne ficou sendo muito mais moderno do que os luminares da fase romântica ou vitoriana.
“Um poema é, em si, um acontecimento, uma experiência e, não, um mero reflexo disto”. Usar substantivos concretos, nomear eventos, concretos, a fim de invocar, sugerir, formular, coisas abstratas. Característica radical do purismo, a encontrar, nele, seu ponto de referência para quantos outros, do simbolismo ou premodernismo: Mallarmé, Laforgue, Lorca, Hopkins, Montale, e todos os grandes da poesia inglesa do século XX: Yeats, Pound, Eliot, Cummings, Hart Crane, Dylan Thomas.
O poeta que foi erótico-materialista, dizendo (e, aqui, seguem trechos das traduções de Augusto de Campos) na Elegia: indo para o Leito:
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo ante:
A coberta de um homem te é bastante.
E que foi inexcedivelmente platônico, espiritualista, em The Extasie, um dos maiores poemas de todos os tempos:
Onde, qual almofada sobre o leito,
A areia grávida inchou para apoiar
A inclinada cabeça da violeta,
Nós nos sentamos, olhar contra olhar.
Nossas mãos duramente cimentadas
No firme bálsamo que delas vem,
Nossas vistas trançadas e tecendo
Os olhos em um duplo filamento;
Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura
E modelar nos olhos a figura
A nossa única propagação.
John Donne foi só poeta para poetas? Não. A poesia ganhou tempo. Ainda é uma resposta contemporânea - à procura de interlocutores.
Correio da Manhã
11/06/1972