Quando, por encomenda de Carlos Lacerda, para a Livraria Eldorado Editora S. A., começou Nélson Rodrigues e escrever O Casamento, esperava-se naturalmente um êxito. Aquele que continuava (e ainda continua) a ser, de longe, o nosso maior dramaturgo, escrevia também uma prosa leve, de ritmo dinâmico, descrições insólitas, fosse no sentido chocante ou hilariante. E, como sempre, procurando lexicalizar suas metáforas ou invocações repetitivas. Algumas ou quase todas dessas características já podiam ser constatadas anteriormente, através das crônica, principalmente de A Vida como Ela É e A Sombra das Chuteiras Imortais, ou de outros romances: Meu Destino é Pecar, Minha Vida (estes dois, publicados sob o pseudônimo de Susana Flag) e Asfalto Selvagem, este último contendo a série de amores da Engraçadinha Livro I, Seus Amores, Seus Pecados dos 12 aos 18 anos, Livro II, Seus Amores, Seus Pecados (Depois dos 30). Em Asfalto Selvagem, surgiram, com mais intensidade, os elementos do estilo e do mundo de Nelson. Por exemplo: lembrar-se de um fato ou uma pessoa, ambos reais, e usá-los como referência metafórica. Assim é que falava no Dr. Odorico, que tinha o bigode e a distinção de Adolphe Menjou, ou utilizava invocação como “víbora de túmulo de faraó”, a fim de dizer o que ele pensava de sua mulher. Ao mesmo tempo, introduz na ficção amigos ou conhecidos, como, no caso, os jornalistas Oto Lara Resende, Wilson Figueiredo e Hermano Alves.
Um romance que fica à altura da maior obra teatral do Brasil
EM 1966, é lançado O Casamento. A capa simples e expressiva, de Enrico Bianco, só oferece três cores (branco, vermelho e preto); no centro, ligeiramente esmaecido, o rosto de uma noiva, com duas mãos sinistras a tocar-lhe o véu. Na contracapa, uma foto bem nítida do autor e a famosa conceituação de Manuel Bandeira a seu respeito: "É de longe o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura." Enfim, na página 3, o aviso: Leitura para Adultos. E, quase de saída, nem isso. Poucos dias decorridos de sua publicação, O Casamento gozou da glória de inúmeras obras históricas isto é, foi proibido pelo governo, através de ato do então ministro da Justiça, Carlos Medeiros, e retirado das livrarias. Mas o tempo passou - hoje, inclusive, já é filme. A primeira leitura do romance deixa-nos diante daquele "óbvio ululante" que Nélson tanto emprega: trata-se de um dos maiores livros de ficção da literatura brasileira, à altura do que legaram Machado, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Mário e Oswald de Andrade.
Qual o segredo? Intuição ou muita técnica? É a primeira muito bem trabalhada pela segunda. Porque Nélson não é só genial, como muitos dos seus admiradores julgam - ele também é cerebral. Assim como no teatro, as suas impressões do mundo e do viver são, nesse romance, transformadas, traduzidas em transe. E, isto, através de um mecanismo bem rico e complexo. Um aparato que calcula duração de diálogos e descrições, para criar um ritmo que incite à devoração da narrativa. Em paralelo, funcionam o monólogo evocativo da memória e a fragmentação da cronologica da história. E todo esse aparato, no leitor, despeja uma chuva inédita, insólita, de imagens, expressões, situações. E, como já dissemos, é um pêndulo instigante, incessante, a oscilar entre o trágico e o cómico. Ou, melhor esclarecendo: na superfície, cómico; no fundo, trágico .
O Casamento é um dos raros romances que são lidos não apenas sorrindo - rindo mesmo. E, por isso, a prosa não é somente degustada, como a de um Machado, por exemplo - ela é devorada mesmo. Mas vamos à história. Ela ocorre durante dois dias que antecedem à realização de um casamento. O pai da noiva - personagem principal - é Sabino Uchoa Maranhão, um homem de sucesso, que ganhou muito dinheiro como incorporador e anda de Mercedes com chofer. Sua filha, que vai casar com Teófilo, é Glorinha, a preferida pelo pai entre as outras irmãs. A mulher de Sabino, Maria Eudóxia, constitui figura apática. Mas há dois amigos de Sabino que são personagens de peso, que influenciam, emitem idéias e conceitos, nem sempre os mais regulares. São o Dr Camarinha, ginecologista da família, e o padre, Monsenhor Bernardo. Além disso, em passagens menos freqüentes, porém importantes, existem a secretária de Sabino, Dona Noêmia, com a qual, subitamente, ele decide cometer o ato sexual, e Antônio Carlos, filho do Dr Camarinha e que deflorou Glorinha, numa cena das mais delirantes. Enfim, há o Xavier, amante de Noêmia, casado com uma leprosa e que enseja uma das melhores imagens de Nélson, ao assassinar a dita cuja: "Atirou no meio do sorriso."
Um autor que vai direto ao seu assunto
Não é das mais fáceis a tarefa de contar todo o enredo, recompô-lo, no vaivém do tempo e da memória, num painel caricato da classe média, com suas frustrações, suas fúrias e ambições, contidas ou desesperadas. Para os personagens de Nélson, a técnica do realismo do comportamento, o estilo comedido tornam-se lixo - ele vai direto ao inseto do vale-tudo. E, nesse ponto, também no teatro, ao contrário da maioria dos dramaturgos e romancistas, o que há, em sua obra, de obsceno, fescenino, de tara, de crueldade, de sangue enfim, não se passa, realisticamente, sempre no bordel, no presídio, no bas-fond - passa-se na casa de família. Por isso, como artista, ele é o grande radical. Incomoda a muitos. Ainda nesse sentido, o romancista que mais se aproxima dele é Carlos Heitor Cony.
Então, voltemos à história contida em O Casamento. Mas é difícil, dada a complexidade do painel, proporcionar uma narrativa linear. Vamos resumi-la numa frase, que é o eixo geral dos fatos e sensações. O Casamento é a história de um homem rico que casa a filha e confessa um crime que não cometeu. Não existe, a rigor, uma só narrativa. O livro compõe-se de flashes de várias narrativas, entremeados por alusões a fatos e personalidades da vida real, os mais heterogéneos. Fala-se em Carlos Drummond de Andrade, de um jogo de futebol da época ou, mais uma vez, de Rafael de Almeida Magalhães, como efígie de moeda. A ação, do presente, pára e retorna ao passado; volta e dá um salto. Enquanto isso, o erotismo é intenso, nas situações mais incríveis o oposto do velho glamour consagrado por Hollywood - é o que se vê no encontro de Sabino e a secretária. Em paralelo, os personagens emitem máximas, qual um La Rochefoucauld de subúrbio, "de galinheiro", como diria o autor "O casamento já é indissolúvel na véspera." "Pode-se resistir à catástrofe com pequenos atos infinitamente modestos." "O homem de bem é o gangster da virtude." " Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva." "Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém." E por aí afora.
E é isso aí, Nélson. Às vezes, mal descreve o tipo físico, o modo de conduta de seus entes, mas as frases qu lhes põe na boca já descrevem tudo. Até pelos nomes. O nomes já possuem uma carga significativa, estratificam maneira de estar no mundo. Consistem numa espécie de crítica, de sátira, de ferrete marcado, implacável, para quem os carrega. De novo - é só relembrar o nome do personagem principal, do incorporador, Sabino Uchoa Maranhão.
Uma influência inegável em toda a obra de Nélson Rodrigues foi a das técnicas do cinema. Especialmente montagem, com os cortes bruscos, e a iluminação, que fez o sucesso do expressionismo alemão. Pois, em O Casamento, sem a chance visual da iluminação, a principal estruturação refere-se basicamente à montagem. O princípio-meio-fim e facelado, o leva-e-traz das rememorações, do que, em cinema, se entende por flash-back. Ao mesmo tempo, o diálogo incisivo, com um colorido de frases pitorescas . O humor mascara a tragédia e também o que há de violência no gesto e ambições humanas. O desfecho, seco. Uma fra se simples, "era feliz" - e um corte brusco na avalancha de situações aberrantes, que não deixam de simbolizar a falta de um "algo mais" que nos nega a vida, afinal sem muitos mistério. Tudo terminou em termos de uma história sincopada, mas , daqui a pouco, tudo recomeçará no carrossel de um novo livro. Ou uma nova peça.
O amor que more nunca foi amor pra ele
Vale apreender o que representa O Casamento na obra de Nélson. Talvez seja, em primeiro lugar, o romance que serviu para demonstrar, em definitivo, que o escritor é tão bom quanto o teatrólogo. É verdade que menos importante, pois, no teatro, operou uma ampla revolução, a partir de 1943, com a sua segunda peça, Vestido de Noiva - por coincidência, outra vez em cartaz no momento.
Em segundo lugar, reafirma que o fabuloso manejo com o diálogo não funciona apena em termos de palco ou tela cinematográfica; funciona dentro do simples ato de leitura. A par disso, imagens de efeito, a revelar a técnica do poeta dentro do prosador "Num instante, o suor do mulato apodrece no ar" "De joelhos na cama, passando a mão na boca, olha aquela mulher que morde o próprio gemido." Em suma, trata-se de uma espécie de síntese de toda uma aga espalhada pelas peças. O pecado e a autopurgação porque o ser humano não encontra o amor, ignora o sentido do que é amar. Segundo Nélson, todo amor tem de ser eterno; se não foi, é porque não era amor. Ao mesmo tempo, o sexo sem amor é triste. A partir daí, emergem, na superfície, as variantes temáticas e as pinceladas humanas, entre o ridículo e o patético. E literariamente falando, estamos diante de um dos melhores caricaturistas de pessoas e acontecimentos. Por outro lado, há os que vêem, no seu pathos, uma aproximação com o teatro grego.
No Casamento, aparecem quase todas modalidades, normais ou anormais, de relacionamento ou sentimento amoroso. Começa pela fixação incestuosa de Sabino pela filha, Glorinha, continua no relacionamento desta última com Antônio Carlos, o filho do Dr. Camarinha, no dia em que foi deflorada, prossegue na ligação homossexual deste com o médico assistente do pai. E há Sabino com Eudóxia e com Noêmia; Noêmia com Xavier e este com a leprosa. Só o que escasseia mesmo em sua obra é o amor platónico - cuja maior expressão literária talvez seja o poema, O Êxtase, de John Donne.
Logo depois de publicar O Casamento, o Correio da Manhã começou a publicar outra fase de sua carreira - as Memórias, que, posteriormente, com algumas alterações de enfoque, transformaram-se, em O Globo, nas Confissões. Foi através das Memórias e das Confissões que também se pôde saber com mais detalhes a biografia e a experiência vivencial de Nélson Rodrigues, pernambucano de 62 anos, e as coisas que mais o impressionaram. Desde os tempos do menino de colégio, com a cabeça grande qual um "anão de Velasquez", invejando o sanduíche de ovo do colega. Aí começa a fixação na fome. São os tempos da Aldeia Campista e da gripe espanhola e, depois, a sua tuberculose e instalação no sanatório de Friburgo - o sanatorinho. Depois, a vida de repórter policial, que lhe deu imenso alimento à obra, pois, no mundo de ficção de Nélson Rodrigues, é raro não aparecer a polícia. Até porque o crime também é uma constante.
Um torcedor e um cronista apaixonado
Ao mesmo tempo, as tragédias que marcaram sua própria família. Depois intensificou-se a paixão pelo esporte e o Fluminense Futebol Clube, em especial. Assim, na coluna que ainda hoje assina, À Sombra das Chuteiras Imortais, tornou-se o primeiro cronista de esporte torcedor confesso de um clube. Aliás, uma das coisas que Nélson mais duvida no homem é a capacidade de ser imparcial. Ele mesmo não esconde sua vaidosa parcialidade em relação ao escritor e autor Nélson Rodrigues, pois, em sua opinião, o artista que não se julga um gênio deveria desistir do métier.
“O gênio morre, só a imbecilidade é eternal”
E ficou sendo , portanto, um dos escntores mais polêmicos que o Brasil já teve. Polêmicas artísticas, políticas, futebolísticas. Algumas ficaram inesquecíveis, fosse pela fama dos contendores ou pelas frases, os dogmas que tiram o véu do óbvio. Foi assim, por exemplo, que, há muitos anos, dizia invejar determinado crítico teatral, seu inimigo. Explicava: porque é eterno. Ante a perplexidade, fazia a equação: vejam, Leonardo está morto, Shakespeare está morto, mas o Sr. Fulano de Tal não morrerá nunca, porque a imbecilidade é eterna.
Através das Memórias e Confissões, pode-se ver como são os detalhes inesperados que se fixavam em sua memória e o impeliam às conclusões morais. E tais impressões, além de cenas ou acontecimentos que imaginou ou presenciou, são permanentemente repetidos nas crônicas, na intenção de criar um léxico próprio. E, por isso, passam a freqüentar as peças e romances. É o umbigo da odalisca, a viúva machadiana, gorda e patusca, o fauno de tapete, o poente de folhinha, o débil mental de babar na gravata, Mata-Hari com um seio só, o marxista de galinheiro, o mau tempo de quinto ato do Rigoletto etc. Realmente, a última coisa de que Nélson Rodrigues pode ser acusado é de falta de originalidade.
O Casamento quer mostrar um universo extremàmente desesperado e ridículo nas pequenas motivações de seus habitantes. Voltamos a repetir: o autor pode ser naturalista no varejo, ultrapassando até os limites do escabroso em diversas cenas, mas não é um realista típico. Não escreve para sociólogos; talvez para psicanalistas, embora seja inimigo da classe. Para alguns, é apenas um moralista de talento. Difícil explicar, porque, até em seu pessimismo, há complexidade. Pelo seu próprio estar, pelas suas próprias preferências pessoais (futebol, folhetim, filé com fritas, mas feitas na hora etc.), demonstra gostar de gente. Mas sua obra parece demonstrar que não acredita no homem. De qualquer forma, para que discutir diante do óbvio? Não é necessário ser profeta para constatar que é uma das poucas obras formadas numa cultura genuinamente brasileira.
Revista Manchete
01/01/1977