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Criação X Burocracia

Em sua pequena novela Schachnovelle (traduzida para o português sob o título de A partida de Xadrez), o escritos vienense, Stefan Zweig, tem, num dos protagonistas, o campeão húngaro, Mirko Czentovic, alguém de muito parecido com Bobby Fischer. Czentovic é inculto, arrogante, exige dinheiro para qualquer exibição (inclusive para uma ingênua simultânea proposta pelos passageiros do navio onde viaja) e só pensa neste jogo eterno – anda sempre com um xadrez de algibeira.
Aliás, o entrecho desta novela é extremamente interessante e poderia ser melhor aproveitado, caso tivesse Zweig a vocação do romancista ou prosador autêntico e não ficasse apenas na faixa do contador de histórias. Czentovic, aos doze anos, com a morte do pai, passou a ser pupilo de um pároco, numa cidadezinha à beira do Danúbio. Era lento no trabalho, retardado no aprendizado. O pároco jogava xadrez, todas as noites, com o sargento da gendarmeria – o menino, calado, a espiar. Certa vez, tendo o padre que sair, foi convidado a jogar pelo sargento. Ganhou-o, uma, duas, várias vezes. Também com o padre. Passou a ganhar de todo mundo em sua aldeia e na cidade vizinha. Daí, até a campeão do mundo.
Agora estava no navio, rumo a um torneio em Buenos Aires, quando alguns passageiros convidaram-no para jogar. Exigiu dinheiro – foi aceito por um milionário escocês – em lugar da simultânea, joga sozinho contra uma espécie de conselho de enxadristas amadores – está ganhando fácil, quando um estranho (a quem Zweig simplesmente nomeia Dr. B.) junta-se ao grupo, prevê jogadas espetaculares, sete, oito lances antes, e muda o desfecho da partida. Vai haver um mano-a-mano entre o campeão e o desconhecido. Este, antes da partida, revela ao passageiro-protagonista, o seu passado. Foi preso pelos nazistas, logo no início da ocupação da Áustria. Fica num quarto sem nada que o entretenha, sem ninguém com quem se comunicar – uma técnica de lavagem cerebral para levar a confissão. Um dia, consegue furtar um livro de xadrez, com a reprodução de centenas de partidas – reproduz as peças com o miolo de pão e usa o cobertor quadriculado como tabuleiro. Só faz isso meses a fio – já não precisa de cobertor – mentaliza as partidas – joga na puta abstração do espaço mental. Com o tempo, esta capacidade de antelevisão exadrística torna-se alucinatória, jogando ele contra ele mesmo, o eu bidivido nas combinações mais refinadas e arrojadas – até que é liberto, eurado e nunca mais pensa em xadrez.
Mas a tentação retornou no navio. Joga contra Czentovic e derrota-o. Este pede revanche, na hora: embora aconselhado pelo passageiro (o narrador, na primeira pessoa) a se recusar, volta ao tabuleiro. O campeão, notando-o agitado, usa o expediente de usar de excesso de lentidão para dar seus lances – realmente o Dr. B. Já ultrapassara aquela e estava, em nova alucinação, jogando três ou quatro partidas adiante. E quando Czentovic, afinal, faz outro lance, Dr. B. joga errado porque deu xeque no jogo mental em que estava empenhado, contra ele próprio.


Criação Abstrata

A literatura, vez por outra – desde um conto de Malba Tahan, Xeque-Mate ao Diabo, até um romance policial admirável, como O Bispo Preto, de S.S. Van Dine – recorre ao xadrez, como leit-motiv. O que, no entanto, vale ressaltar, através da novela de Stefan Zweig, é a paixão pelo ludos, que leva ao delírio da criação puramente abstrata.
Se a arte é um jogo, seu resultado surge como qualquer outra manifestação concretizada, um objeto virtual. O caráter especulativo da ciência pode ser também um jogo, mas as formular que ele projeta remetem, de imediato, a alterações no universo físico. No jogo em si, o resultado é puramente abstrato. No xadrez, peões, cavalos, bispos, torres, reis e rainhas são algarismos que projetam mentalmente uma fórmula, uma variante, uma novidade teórica. Nada de ética ou estética – é o pensamento puto, a capacidade na matemática das combinações, por (talvez com exceção do go) trata-se do único jogo onde a presença do acaso está controlada. Ganha sempre quem jogou melhor – o derrotado não pode se queixar: “você teve sorte” (com o bridge ainda o absoluto da força das cartas).
No xadrez, esforço de concentração, necessidade de criação e tensão na luta contra o tempo remetem de tal forma à abstração pura, que, parece, apenas os espíritos anormais chegar à exceção, à genialidade. O que a novela quer provar é que são pessoas de comportamento ou temperamento insólito: Czentovic, inculto, incapaz de sucesso em qualquer outra atividade era gênio de tabuleiro; o Dr. B., pela experiência no cárcere, desenvolver forçadamente o cérebro para aquela especialização, que, a partir de determinado ponto do jogo, entrava em transe paranormal até fugir à realidade do tabuleiro e imergir nas galáxias de outras partidas, com ele próprio – preto e branco – bipartido.
Fisher não está muito longe desses personagens – basta tomar conhecimento de sua atitude, de sua biografia. Mas a sua resposta de criatividade foi de importância, não só para o jogo em si, mas para outras considerações extra-enxadrísticas. Rompeu, sozinho, com o espírito burocrático imposto no xadrez pela hegemonia soviética. Aquele espírito onde o conforto de tablas é dominante, ascendente sobre o risco de inventar. Pois todo o jogo impõe invenção – para ser Grande Jogo. Assim como a Grande Arte.
Se a invenção assinala as cadeias do processo, às vezes, como preço, a loucura é necessária. Ou até fatal, contra o excesso de estagnação.

Correio da Manhã
17/09/1972

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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