Como um segredo dito / no ouvido de um homem / do povo caído na rua.
Quando começou a poesia brasileira? A pergunta é pertinente se, em vez de critérios meramente geográficos, formos nos ater à utilização do instrumento idiomático (da língua) na perquirição da linguagem (sistemas de códigos), que é a função maior do poeta. O primeiro grande poeta brasileiro, geograficamente considerado foi, sem dúvida, Gregório de Matos. Mas tirante a inspiração temática, era um poeta português, da mesma forma que alguns dos nossos excelentes barrocos, que, em lugar da Academia dos Esquecidos, poderiam ter participado da Fênix Renascida ou do Postilhão de
Apolo. Idêntica perspectiva pode ser extraída da leitura de Tomás Antônio Gonzaga.
É durante o período do romantismo que se pode iniciar a detectar a atuação da língua, já tomada em seu brasileirismo (apesar da influência do indianismo europeu). E o processo poético nacional começou historicamente em rara altura. Ele não se deve, estruturalmente, nem aos ardores de Castro Alves, aos soluços de Casemiro ou às saudades de Gonçalves Dias. Muito acima deles estava o maranhense Joaquim de Sousa Andrade - Sousândrade, que, inclusive, mesmo sob um ponto de vista internacional, já trazia elementos para o processo de uma linguagem que apenas começariam a atravessar o crivo de sistematização durante o século atual. Intelectual de cultura cosmopolita, liberto do aconchego conformista a um lirismo piegas, ele, em seu longo poema, O Guesa Errante, utilizou recursos tipográficos, de montagem de palavras e de inserção ou citação de termos ou trechos de Wall Street, um anticapitalismo avant la letter - que de Ezra Pound. O nosso pamasianismo apesar do métier de alguns dos representantes (Bilac, Raimundo, Alberto de Oliveira etc.) foi uma página em branco. E o mesmo se diria do simbolismo, não fosse a figura quase desconhecida e solitária de Pedro Militão Kilkerry – o nosso único simbolista de estirpe mallarmaica - ou de Augustos dos Anjos, uma espécie de maldito primitivo, um dos nossos poetas mais originais.
Até o lance decisivo do modernismo, em 1922, a lista básica era, portanto escassa; Sousândrade, Kilkerry e Augusto dos Anjos, e isso, devido a um corte diacrônico feito retrospectivamente no processo pelos poetas e críticos da geração atual, principalmente aqueles alistados na vanguarda. Não se pode, em paralelo, dizer que as raízes da poesia de 22 fossem essencialmente brasileiras. Elas traduzem a importação do vers libre, mas que - os meios nossos da época - refletiam o escândalo. O ponto alto europeu do vers libre era "Zone", de Apollinaire. Aqui começamos também por cima, com "Pitágoras" ou a "Drogaria do Éter e da Sombra". Mas o vers libre trouxe mais facilidade para que o contexto idiomático realmente brasileiro agisse sobre a poesia. A imitação dos modelos importados já não era, pelo menos, direta. Mário e Oswald de Andrade desenvolveram a sua respectiva obra poética. Manuel Bandeira fundou aquele lirismo pessoal. Todavia o grande poeta de 22 no sentido de uma apropriação isomórfica da ótica pessoal, correlacionada com a abertura do vers libre, seria Carlos Drummond de Andrade. Veio depois para superar os seus antecessores, assim como João Cabral de Melo Neto viria depois para - adotando principalmente o critério de palavra puxa palavra - superá-lo na intensidade do texto, Drummond ficou sendo, no entanto, o grande poeta nacional vivo.
O esquema cronológico da expressão de sua obra pode talvez ser assim simplificado: 1) lirismo/humor; 2) náusea/pessimismo/anarquismo; 3) engajamento/humanismo; 4) meditação, ou existencial/filosófica ou sobre o próprio fazer poético. As fases não são rigorosamente demarcadas, existem
interpenetrações, mas cabe o registro pela frequência.
Num método de fixar "essência e medulas", vamos procurar traçar o CDA básico, isso é, extrair o sumo de uma obra extensa. Apesar da luta pela objetividade, o parti-pris - evidentemente - não pode fugir a sua dose subjetiva na escolha, a contraditar inclusive com algumas seleções já organizadas pelo poeta. Ele Drummond essencial vem em ordem também cronológica.
1) Construção ("Um grito pula no ar como foguete / vem da paisagem de barro úmido, caliça e andaimes hirtos. / O sol cai sobre as coisas em placa fervendo. / O sorveteiro corta a rua / E o vento brinca nos bigodes do construtor").
Esse poema curto, numa montagem de frases isoladas e quase heterogêneas, lembra o exemplo da enumeração caótica lançado por Leo Spitzer. O título é algo irônico em relação à construção caótica. Exemplo do CDA 22.
2) No Meio do Caminho ("No meio do caminho tinha uma pedra..."). É uma das peças mais famosas no contexto da obra. A técnica da repetição incessante que cria a própria monotonia a que se refere o tema, pela nomeação repisada do objeto novo que despertou a retina: a pedra no caminho. Desde esse ponto, CDA já era um poeta conscientemente preocupado com a linguagem.
3) Quadrilha ("João amava Teresa que amava Raimundo..."). A dança verbal do desencontro, em outro poema prosaico/sintético que, posteriormente, João Cabral readaptaria.
4) Epigrama para Emílio Moura ("Tristeza de comprar um beijo / como quem compra jornal"). Uma das pedras de toque dentro da concepção tradicional. Aí, já começava o "travo da amargura" que habitou a grande fase da obra.
5) Soneto da Perdida Esperança ("Perdi o bonde e a esperança"). A forma soneto adaptada ao linguajar modernista, em que as nomeações concretas e abstratas se mesclam na dicção intencionalmente descontraída. Uma das coisas mais tipicamente CDA.
6) Em Face dos Últimos Acontecimentos ("Oh! Sejamos pornográficos / (docemente pornográficos) / Por que seremos mais castos / Que o nosso avô português?"). Pequena obra-prima no toque humor-sarcasmo, que marca as antologias.
7) Elegia 1938 ("Trabalhas sem alegria para um mundo caduco"... "porque não podes sozinho dinamitar a ilha de Manhattan"). Aqui se poderia marcar o início do período engajado: a náusea, o comunismo, a solidariedade com o trabalhador, embora ainda seja um ponto menos intenso do período.
8) O Lutador ("Lutar com palavras / é a luta mais vã // entanto lutamos / mal rompe a manhã"). Meditação arespeito da atividade do poeta - "a poesia não é feita com idéias e, sim, com palavras", Mallarmé. A redondinha menor ajuda ao efeito do fluxo desejado, poema-chave na época (1941).
9) José ("E agora, José? / a festa acabou / a luz apagou / o povo sumiu"). Outro CDA típico, dos mais conhecidos.
10) Procura da Poesia ("Não faça versos sobre acontecimentos"... "A poesia (não tires poesia das coisas) / elide sujeito e objeto"). Outra perquirição do fazer poético. A partir do conselho inicial, contra aquela facilidade de achar "inspirações", vem, no final, a determinação lúcida de elidir um logicismo clássico da língua.
11) A Flor e a Náusea ("Olhos sujos no relógio da torre"... "Porém o meu ódio é o melhor de mim / Com ele me salvo / e dou a poucos uma esperança mínima"... "Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego / Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia / rompe o asfalto"... "É feia. Mas é realmente uma flor I furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio"). Talvez o maior poema de Drummond, no verso livre exprimindo a essência do seu estar (pelo menos o estar da época) diante do mundo e dos acontecimentos. O ápice do discursivo, da dicção prosaica.
12) Nosso Tempo ("Este é o tempo de partido / tempo de homens partidos"... "O poeta / declina de toda responsabilidade / na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, instituições, símbolos e outras armas / promete ajudar / a destruí-lo / como uma pedreira, uma floresta, um verme"). Um dos poemas mais furiosamente engajados, exhibit de CDA na trincheira.
13) Morte no Avião ("Acordo para a morte / Barbeiome, visto-me, calço-me" ... "Caio verticalmente e me transformo em notícia"). Peça das mais conhecidas, sendo que o verso final quase ficou lexicalizado.
14) Telegrama de Moscou ("Aqui se chamava / e se chamará sempre Stalingrado / - Stalingrado: o tempo responde"). Um dos melhores exemplos do engajamento, com o touchstone final.
15) Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin ("como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua"... "Há uma cidade em ti que não sabemos"... "O Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode / caminham numa estrada de pó e esperança"). Um dos maiores texto de Drummond. Dentro do temário Chaplin, nem o grande Maiakóvski consegue ultrapassá-lo. E aquela idéia do segredo ao homem do povo traduz a catarse verbal que melhor reflete o temperamento do poeta.
16) Desaparecimento de Luiza Porto ("Pede-se a quem souber / do paradeiro de Luiza Porto / avise sua residência / à Rua Santos Óleos, 48"... "Está inerte / cravada no centro da estrela invisível / Amor"). Junto com "Chaplin" e "A Flor e a Náusea" forma a grande trinca da obra CDA, antes da virada em "Claro Enigma". Saindo da técnica do anúncio em jornal, abre-se ao fim, numa épica da pungência do cotidiano. E a palavra final (estrela invisível) – Amor - sai do lugar comum e ganha o peso rilkeano.
17) Composição ("É sempre a chuva / nos desertos sem guarda-chuva"... "O mais é barro esperança de escultura"). Ironia metafísica numa construção típica do poeta.
18) Visão 1944 ("Meus olhos são pequenos para ver"). Cantabile, guerra-solidariedade, algo à la Eluard, mas como um exemplo antológico do domínio, àquela altura, que possuía do verso.
19) Confissão ("Não amei bastante meu semelhante / não catei o verme nem curei a sarna / Só proferi algumas palavras / melodiosas, tarde, ao voltar da festa").
20) Tarde de Maio ("Como esses primitivos que carregam por toda a parte o maxilar inferior dos seus mortos assim te levo comigo, tarde de maio"). Abertura em pedra de toque.
21) A Mesa ("Dentro não pressentias / como o branco pode ser / uma tinta mais diversa / da mesma brancura... alvura / elaborada na ausência / de ti, mas ficou perfeita / concreta, fria, lunar / Como pode nossa festa / ser de um só que não de dois?"). Poema longo, com esse final que é um dos pontos altos da linguagem de Drummond.
22) "A Máquina do Mundo" ("E como eu palmilhasse / uma estrada de Minas pedregosa / e no fecho da tarde um sino rouco / se misturasse ao som dos meus sapatos / que era pausado e seco"). Perquirição filosófica em admirável decassílabo, um poema que se vai juntar ao nível daquela trindade do maior CDA.
23) Relógio do Rosário ("Mas na dourada praça do Rosário / foi-se no som a sombra. O Columbário / já cinza se concentra, pó de tumbas / Já se permite azul, risco do pombas"). Notável no ritmo, no uso funcional dos enjambements.
24) Elegia ("Ganhei (perdi) meu dia / E baixa a coisa fria / também chamada noite"). Um belo poema, o único que sedestaca, acima, no pior livro de Drummond, Fazendeiro do Ar.
25) Massacre ("eram mil a atacar / o só objeto / indefensável"). A palavra o objeto. A partir de Lição de Coisas, CDA volta-se para a apropriação de técnicas "concretizantes" na estrutura discursiva de seus poemas.
26) Isso E Aquilo ("O fácil o fóssil / o míssil o físsil...") A repetição exaustiva de palavras rimando-se uma a uma até chegarmos ao ptyx mallarmaico.
27) Minimini- incluído na série Yers de Circonstance do livro Versiprosa, reflete CDA em grande desembaraço no silabar instigante - competência.
Esse respigar retrospectivo não se pretende mais do que isso: ponto de partida para tentar analisar a suma, o núcleo, o cerne CDA - e ver-se como o poeta em luta com a palavra em busca da linguagem, acerta e erra. Drummond, juntamente com Mário e Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto, é o poeta do processo nosso nesse século, antes do turning point do concretismo. De qualquer forma, o "algo mais" que a poesia nos dá, em matéria de sugestão e emoção, naquele tempo em que ainda era normal criar em verso ou meramente com a linguagem discursiva, deve muito a ele.
Correio da Manhã
10/12/1967