Poeta, tradutor, divulgador de Ezra Pound, crítico impiedoso aberto à vanguarda, o piauiense Mário Faustino não admitia entre seus critérios de análise a amizade ou a conveniência. Morreu aos 32 anos, deixando a meio pensamento e obra. Agora, 23 anos após o acidente aéreo fatal, é editada uma seleção dos seus melhores poemas.
O poeta e sua hora
"Existencial narciso mais que fisionômico espelho-indiferente mira-se nas calendas: seis e vinte, vinte e seis voltas vem de re volucionar em torno de seu próprio ser e sol."
O trecho acima, reflexo pessoal, cartão de visitas da dicção e versificação criadora de Mário Faustino - abertura do poema, cujo título é uma data- "22.10.1956" - data em que saudava os seus 26 anos de existência.
Era também a época na qual, aqui no Jornal do Brasil, acelerava a sua grande trajetória, não só de poeta, mas de renovador da crítica de poesia, de ensaísta, tradutor, lançador de novos autores. A sua página, "Poesia-Experi ência", logo se transformou num ponto de referência obrigatória para quem se interessasse pelo assunto. E o SDJB marcou em definitivo uma presença instigante e renovadora dentro do panorama da literatura e das artes, com a publicação dos produtos dos movimentos de vanguarda, em especial, a poesia concreta e, depois, a poesia neoconcreta. Enfim, o que havia de "prafrente" também no romance, artes plásticas, cinema, teatro.
Mário, de certa forma, encarnou a alma de quase tudo. Não se encaixava como poeta de vanguarda, porém aceitava, debatia compreendia o que estava formulado nos movimentos. O seu fazer, aliás, absorvia o que lhe parecia assimilável da obra dos inventores. Veja-se o que fez no seu "Soneto" (Bronze e brasa na treva: diamantes), no qual os decassílabos são especializados, a fim de conferir uma segunda variante rítmica à mais exercitada das formas fixas em diversas línguas. Ou então as experiências em outros poemas, como o já mencionado "22.10.1956", "Cavossonante Escudo Nosso", "Ariazul" ou " Marginal Poema 19".
Do grupo de poetas de nossa geração que promoveu sistematicamente a divulgação da obra de Ezra Pound aqui no Brasil, foi o mais poundiano de todos: não apenas na teoria, mas principalmente na prática. E foi nesse sentido que se transformou no maior crítico militante de poesia em nossa literatura. Vários autores, até então habituados ao elogio fácil e à promoção nas colunas tidas como literárias, desfrutantes, desfrutários e/ou desfrutáveis no transe da permuta de encômios no âmbito de suas curriolas, encontraram seu Waterloo na crítica de Mário. Foi uma espécie de choque cultural: os vates laureados, os velhos medalhões não estavam habituados a isso. Não me lembro de qualquer um que haja polemizado com ele, embora MF oferecesse o flanco da sua própria poesia.
Seu longo artigo sobre a poesia concreta e o momento poético brasileiro, publicado em fevereiro de 1957, agitou os arraiais. Nele, examinava a obra e a atuação daqueles que considerava os melhores poetas da época (Drummond, Bandeira, João Cabral, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Vinícius, Jorge de Lima, Cassiano Ricardo), em comparação com os vanguardistas (Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ferreira Gullar) e procurava mostrar a importância do movimento concreto. Apresentava exemplos de poemas em verso desses últimos a fim de evidenciar a capacidade que possuíam para gerar uma situação, pelo menos, crítica.
Mas as suas especulações estéticas, a partir da condição básica de poeta, giravam em torno de todas as modalidades de manifestação. Discutia, debatia, interessava-se sobre cinema, teatro, balé, música erudita ou popular, artes plásticas, arquitetura. Assim como, de imediato, colocava observações ou comentários ao lado dos nossos poemas, fazia o mesmo com inúmeros livros que lhe passavam pelas mãos. Lembro quando me devolveu o volume das obras completas de Cassiano Ricardo, então recém-editadas, que pedira emprestado a fim de consumar um longo ensaio - quando, para espanto e escândalo de muitos, considerava Cassiano um "diluidor" (consoante a classificação de Ezra Pound, o diluidor ficava abaixo do inventor e do mestre). Dias depois, ao remexer as páginas do livro, verifiquei que ele havia escrito a lápis, nas folhas finais que estavam quase em branco, um miniensaio a respeito do teatro na atualidade - texto que começa a pairar como raridade.
Colocava nas nuvens o Rashomon de Kurosawa, vibrava no balcão nobre do Teatro Municipal, emitindo seus "bravo!" "bravissimo!", fosse ao término de uma ária de ópera ou diante do Ballet Bolshoi ou do pas-de-deux do Cisne Negro com Rosela Hightower e Sergei Golovine. A euforia como um estar privilegiado. E oralizava como poucos os versos em várias línguas. A fita de rolo, com Mário recitando Fernando Pessoa, Rimbaud e Pound, se perdeu num absurdo caso de acaso. Ficou uma crônica de Carlos Heitor Cony ("O Poeta e a sua Voz"), no Correio da Manhã, recordando essa mesma voz pouco depois de o poeta haver morrido no acidente aéreo em Lima: "Súbito, um silêncio cai sobre todos nós e o gravador começa a girar". E surge a voz... "Pode ser a voz do próprio Pound, que há o Envoi gravado pelo poeta. Mas a voz é outra. E no silêncio que é feito para nós - ou por nós – a presença de Mário Faustino [...] O silêncio explode em nossas nucas e vergamos cada vez mais, à espera de que a fita acabe e tudo volte a ser como antes. Mário - presença física que se toca e que mutila nossas nucas- volta à noite de breu do poema e nos deixa tranquilos e sofridos".
Não conseguiu firmar o nobre pacto / Entre o cosmos sangrento e a alma pura./ Porém, não se dobrou perante o fato / Da vitória do caos sobre a vontade / Augusta de ordenar a criatura / Ao menos: luz ao sol da tempestade. / Gladiador defunto mas intacto / (Tanta violência, mas tanta ternura) / Jogou-se contra um mar de sofrimentos / Não para pôr-lhes fim. Hamlet, e sim / Para afirmar-se além de seus tormentos / De monstros cegos contra um só delfim. / Frágil porém vidente, morto ao som / De vagas de verdade e de loucura./ Bateu-se delicado e fino, com / Tanta violência, mas tanta ternura!
Mário Faustino dos Santos e Silva nasceu no Piauí (22.10.1930). Ainda na adolescência, mudou-se para Belém e, aos 16 anos, começara a publicar seus poemas e crônicas. Ali também principiou a vida de jornalista. Estudos de lingual e literatura inglesa nos Estados Unidos, voltou ao Brasil, trabalhou na Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, tornou-se alto funcionário da ONU e professor da Fundação Getúlio Vargas, onde nos conhecemos e fizemos amizade, em 1956. Ele acabara de publicar um livro de poemas de alto nível, O Homem e sua Hora. Entrei numa sala - Mário datilografava com a velocidade de praxe - perguntei se era do Pará - respondeu que sim - perguntei se conhecia um poeta chamado Mário Faustino respondeu rindo: "sou eu". Pano. Dias depois, entro na sala do diretor da Escola Brasileira de Administração Pública, Benedito Silva, que, imóvel, ouvia Mário a recitar trecho de MacBeth. Pano. Assim era o poeta com suas horas de arroubo, de amor à arte.
A vida cosmopolita, o seu interesse por tudo em volta, identificava-o também como animal político. Discutia política diariamente e foi editorialista desse jornal. Dizia-me numa carta de 29 de março de 1960, enviada de Nova York: "Tudo vai bem por aqui, em suma - mas conto os dias que me separam da volta. Esse Brasil-Macunaíma, barroco e louco, cada vez mais me atrai. Daqui desta distância caminha cada vez mais para a esquerda (felizmente, não a esquerda estalinizante) e vejo que o caminho do Brasil tão grande amado é a neutralidade socialista".
Menos de três anos após, em 27 de novembro de 1962, a morte que era uma presença (ou premonição) frequente em sua obra decretou a hora. O avião em que viajava para cumprir missão jornalística (Cuba, México, Estados Unidos) estourou em Cerro de las Cruces - Lima - Peru. Seu corpo, destruído, perdido. Eram 32 anos apenas; uma biografia que caminhava para as alturas, cortada cerce. Mas o que legou já não é pouco; o que instigou foi muito.
Jornal do Brasil
08/06/1985