"Lutar com palavras
é a luta mais vã
entanto lutamos
mal rompe a manhã"
Drummond - O Lutador
Dizia Mallarmé que a poesia não é feita com idéias e, sim, com palavras. Sabia Drummond dizer "sobcolor" de palavras e, fazendo do poético o falso prosáico ou, deste último, o promissory poético, tudo num risco calculado, poucas vezes esbarrou no lugar comum.
Foi e é (pois a morte não mata a obra) o primeiro grande poeta nacional, pois, enquanto todos os outros grandes possuem suas veredas, lutava ele em várias veredas e enfrentava, assim, o Grande Sertão do verbo. Seco e sério no seu estar, talvez excessivamente esquivo dentro de sua posição (Mário Faustino cobrou-lhe isso,num artigo de 1957), era, entretanto, protéico quando envergava a máscara de poeta. Técnico da palavra – puxa - palavra, do método de repetição, sabia do
vers libre e, ao mesmo tempo, do metrônomo, da rima rica ou dos versos brancos, do formal e do coloquial; sabia, enfim, ser lírico (doce ou amargo), irônico, satírico, autocrítico e metafísico.
Antes de Carlos Drummond de Andrade aflorar, o que existia na poesia pátria? Havia o barroco de Gregório de Matos (que, no entanto, poderia atuar no Grupo da Fênix Renascida ou no Postilhão de Apolo), havia o romântico(?) Sousândrade (porém, quase desconhecido e que só veio à tona na década de 1960, graças a Augusto e Haroldo de Campos), havia Augusto dos Anjos (este sim um poeta genuinamente brasileiro, mas de uma só vereda), poemas de um outro parnasiano ou simbolista e, então, a turma de 22. Aí, tivemos a obra de Luís Aranha, Mário e Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Foi aí, também, que o
gauche entrou em campo:
Alguma Poesia (1930).
Já, então, sabia da montagem, dos cortes entre imagens insólitas. Veja-se neste curto poema, Construção:
"Um grito pula no ar como foguete
vem da paisagem de barro úmido, coliça e andaimes hirtos.
O sol cai sobre as coisas em placa fervendo.
O sorveteiro corta a rua.
E o vento brinca nos bigodes do construtor".
Nesse mesmo volume estava o consagrado
No Meio do Caminho, uma de suas primeiras manifestações sintético-metafísicas:
"No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra ·
no meio do caminho tinha uma pedra
nunca me esquecerei desse acontecimento
vida de minhas retinas tão fatigadas.
Tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra”.
A pedra de Drummond, sem ser propriamente aquela dos sonetos
Petrosi, de Dante, tinha o seu sentido de absurdo, do acaso simplório que desmancha toda uma monotonia vivencial. Basta reparar que, no bojo da monotonia repetitiva, mas funcional, só surge um comentário, chave de ouro no meio do texto: "Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas".
Ainda nesse primeiro livro, lá estava a famosa
Quadrilha, posteriormente retomada por João Cabral de Melo Neto - a tal história de "João amava Tereza que amava Raimundo..." etc, sátira circular dos encontros/desencontros da vida. E também
Cota Zero, reinauguração do poema-pílula, que , depois, faria sucesso de tantos outros vates humoristas: "Stop/a vida parou/ou foi o automóvel?" E os primeiros dos poemas sobre a própria Poesia-Explicação: "Meu verso é minha consolação/meu verso é minha cachaça..."
Era uma aparição diferente. O aparente prosáico desenvolvia significantes até então raramente coomuns em nosso terreno literário.
No segundo livro,
Brejo das Almas (1931-34), emergem peças marcantes em qualquer quadrante. O amargo lirismo de
Boca, com o seu desfechar de dura desesperança: "Boca amarga pois impossível,/ doce boca (não provarei),/ ris sem beijo para mim,/ beijas outro com seriedade". E o primeiro soneto, o da
Perdida Esperança, cujo quarteto inicial valeria, ao invés, como chave de ouro: "Perdi o bonde e a esperança/ volto palido para casa./ A rua é inútil e nenhum auto/ passaria sobre meu corpo". Soneto sem rimas. E comprove-se a irreverência, tão aguda para a época, de
Em Face dos Últimos Acontecimentos - basta ler o começo: "Ou sejamos pornográficos/ (docemente pornográficos)./ Por que seremos mais castos/ que o nosso avô português?"
Sentimento do Mundo, de 1940, cujo poema-título é dos mais admirados por outros escritores, já principia a marcar o
engajament político-social. E só ler a abertura e fecho do notável
Elegia 1938: "Trabalhas sem alegria para um mundo caduco” - "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhatan".
Com
José (1941-2), prossegue a mesma trilha, mas sempre entremeada pelo lirismo ou a meditação metafísica ou sobre o fazer poético. Nesse livro é que está o
Lutador, cujo início é a epígrafe deste artigo. O poema-título ficou como um dos clássicos de CDA: "E agora, José/ a festa acabou,/ a luz apagou,/ o povo sumiu,/ a noite esfriou,/ e agora José?"
Em
A Rosa do Povo (1943-45), perfila-se em definitivo o CDA integral: "Não faças versos sobre acontecimentos” (
Procura da Poesia), e eis
A Flor e a Naúsea, talvez seu maior poema:
"Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta
………………………….
Com a parte final antológica:
"Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, no de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio. paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em.pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio''.
Mais ainda o conciso
Aporo ("Um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a terra/ sem achar escape."),
Equívoco ("Na noite sem lua perdi o chapéu/ o chapéu era branco e dele passarinhos/ saíam para a glória, transportando-me ao céu."), o notável enjambement de
Edifício São Borja ("São Borja São Borja são/ quatro mãos quatro facadas"),
Caso do Vestido ("De que tudo foi um sonho,/ Vestido não há... nem nada") e mais
Morte do Leiteiro, Morte no Avião ("Caio verticalmente e me transformo em Notícia").
Como um Presente, Os Engajados, Carta a Stalingrado, Telegrama de Moscou, Com o Russo em Berlim, terminando com outro dos seus maiores momentos". Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin (ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança"). Drummond, neste longo poema sobre Chaplin, no mesmo tema, superou tranquilamente Aragón e Maiakovski.
Nos
Novos Poemas (1946-7), era apenas prosseguir na trilha do Savoir Faire: desaparecimento de Luísa Porto, composição ("E é sempre a chuva/ nos desertos sem guarda-chuva"). A seguir,
Claro Enigma (1948-51) nos mostra decididamente o Drummond grande elaborador do verso. Além de poemas antológicos, como
A Máquina do Mundo ou
Tarde de Maio, figuram sonetos impecáveis, a evidenciar que, quando queria, controlava o metrônomo. Sonetos irônicos, sobre o soneto (como
Oficina Irritada) ou de máscara de outrem, como o
Sonetilho ao Falso Fernando Pessoa.
No
Fazendeiro do Ar (1952-3) continua com muitos sonetos e faz de novo suas meditações sobre a poesia, como em
Conclusão. Depois, publicou ainda muitos livros - não tinha mais que inovar, a não ser criar ou brincar com as palavras, principalmente em livros, como
Lição de Coisas, e, principalmente,
As Impurezas do Branco.
Inútil desviar-se do óbvio. O
gauche Carlos é provavelmente o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Pode ser que Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto sejam mais importantes do que ele num determinado foco de intensidade. Trata-se, no entanto, de um circuito mais fechado. Já o dele abraçou mundos. E, em toda a língua portuguesa, só em um rival neste século: o também finado Fernando Pessoa.
Em suma, como um
envoi, quem sabe?, esta paráfrase do epitáfio de Rilke:
Poesia, ó rosa de tudo
volúpia de ser o som de todos
sob tantas pétalas.
Jornal da Tarde
22/08/1987