Um livro a respeito de João Cabral de Melo Neto, escrito por Benedito Nunes, acaba de ser editado pela Vozes. Trata-se do primeiro volume da coleção Poetas Modernos do Brasil, orientada e coordenada pelo poeta Afonso Ávila. .
Benedito Nunes é um dos ensaístas mais bem equipados que possuímos, dotado da armed vision e, especialmente, da necessária formação filosófica. Já são bem conhecidos os seus estudos sôbre outros poetas, como Fernando Pessoa ou Mário Faustino. Aqui, nesta obra, consuma uma visão completa do corpo de poemas de João Cabral de Melo Neto, exercitando-se no exame minucioso e exaustivo de alguns dêles - nada de meras divagações impressionistas ou de elogios retumbantes sacados do balaio do acaso, porém método, técnica, seriedade, atualização com os processos de dissecar.
Também o saber e a modernidade do crítico não se apóiam tão-somente na atualização dos métodos, no simples interêsse de, parafraseando o grande poeta Dylan Thomas, "espraiar encantos em palcos de marfim" a propósito de qualquer autor - que termina por ficar em segundo plano, ofuscado pelo autopavoneio do ensaísta. Residem na capacidade de escolha, de ver o objeto estético.
Neste ponto, a escolha foi essencial. Com o passar dos anos, entre aquêles que jâ possuem um corpo de obra mais ou menos definito, João Cabral tornou-se o maior poeta moderno do Brasil. Pelo menos, no sentido de ser aquêle onde menos gratuidades ou autoconcessões se encontram na obra. Nele, rigor rima sempre com vigor - o vigor verbal estribado no pleno racionalismo das concreções metafóricas. Em suma, aquêle que soube ser "participante", não pelo ulular de intenções, mas pela evidência dos poemas em si, voltados para essa água - a água "espêssa" do Capibaribe que descreve a secura de uma região de fome e miséria.
O mais importante em João Cabral foi, no entanto, antes da poesia concreta surgir, haver sido o poeta que, em verso (um verso enxuto e denso, naquela técnica pessoal do novêlo que se desenrola), melhor soube sistematizar uma meditação permanente a respeito da própria poesia. Meditação influenciada exponencialmente por Mallarmé e Valéry, mas que, com o processo cabralino, ganhou formatividade peculiar, original.
Ninguém melhor do que êle conseguiu expressar a angústia genérica, como no antológico. Uma Faca Só Lâmina - também a angústia do criador diante da realidade ("tão violenta que, ao tentar aprendê-la, tôda imagem rebenta"). Ou como, a partir da técnica de tourear, em Alguns Toureiros, fazer a apologia ou cartilha do rigor de construção: "como domar a explosão / com mão serena e contida / sem deixar que se derrame / a flor que está escondida / e como então trabalhá-la / com mão certa, pouca e extrema / sem perfumar sua flor / sem poetizar seu poema".
E, falando ainda em flor - e tambem invocando Mallarmé: "a poesia não é feita com idéias e, sim, com palavras" -, lembrar a sua extrema consciência: "flor é a palavra / flor, verso inscrito / no verso como / manhãs no tempo". É um momento da Antiode, uma de suas maiores reflexões sôbre a poesia, compondo, em determinada época, a trindade temática com A Psícologia da Composição e A Fábula de Anfion. Neste, Anfion é o poeta que, com a flauta diante da página em branco, irá, ao soprá-la construir Tebas (o poema) no deserto (página). E, então, uma de suas maiores imagens ou metáfora do ato de criar: quando Anfion soprou a flauta, "um tempo se desdobrou do tempo, como uma caixa de dentro de outra caixa" - ou seja, o verso, a quadra, o quadrado, do arquiteto verbal em seu tempo.
A poesia de João Cabral de Melo Neto instiga análises e interpretações de impacto. Apesar da bibliografia já ampla, hoje em dia, falta ainda muito para dissecá-la no todo. Agora, êste livro de Benedito Nunes constitui mais um passo importante em tal sentido.
02/12/1971