Um ano e oito meses: foi o tempo que o jornalista e escritor José Lino Grünewald levou para fazer a sua tradução completa – que agora está sendo lançada – dos Cantos de Ezra Pound
“Quando a Editora Nova Fronteira me convidou para traduzir os Cantos, de Ezra Pound, hesitei de início. Afinal de contas, apesar de ser poundiano - como já o eram Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Mário Faustino -, apesar de já ter traduzido alguns Cantos e mesmo outros poemas do Rabi Ben Ezra, a tarefa se apresentava difícil e de duvidosa viabilidade. Afinal, esse trabalho não elidia outros, burocráticos ou não-burocráticos, que perfazem a vida em meretrício: o tal de ganha-pão. Mas era um desafio e, enfim, um labor anti-meretricida. Pound é o maior poeta do século; ao lado dele, só o Sr. Afonso Romano de Sant'Anna.
É preciso compreender a estrutura dos Cantos. Além da concepção do método ideogrâmico - análogo ao que se entende por montagem -, existe a questão do texto em si. Boa parte da obra não é poesia, ou seja, o que se entende tradicionalmente como uma sucessão de versos (rimados, metrificados, brancos ou livres); ela corresponde a elaborações ou transcrições prosaicas. Não são versos; são linhas como a de um livro qualquer: trechos de documentos burocráticos do século XV, cartas de políticos norte-americanos, até endereços.
E, até por ironia, o mais difícil de traduzir nos Cantos constitui o prosaico. Para ajudar, A Companion to the Cantos of Ezra Pound de Carroll F. Terreli e sua equipe, editado pela Universidade de Berkeley, California. Aí então basta dizer que só o Canto LXXIV, por exemplo (o primeiro Canto Pisano), possui 505 verbetes. Bem, se um poeta, a fim de ser devidamente analisado, mobiliza uma equipe de especialistas, a produzir milhares de verbetes, bem, repetimos, ele é, no mínimo, respeitável. E. apesar desse reforço, a dificuldade de tradução esbarra nesse imenso universo de referências (nomes de pessoas, notações históricas e geográficas, menções a acontecimentos, registros ou plaisanteries à clef). Os dicionários e enciclopédias são insuficientes, porque Ezra, muitas vezes ao referir-se a pessoas ou eventos, "dá de barato".
Os Cantos, como disse Hugh Kenner, constituem uma épica sem enredo. Essa montagem de coisas díspares gera o que se entende por descontinuidade. Não há conclusões. num mundo onde, além de capitalistas, usurários, latifundiários, poetas, artistas, pensadores ou simples artesãos, dançam Homero (cujo Canto XI da Odisséia inicia Os Cantos, na tradução da tradução do latino Andreas Divus), Dante, Ovídio e Confúcio (Kung) a realizar a conjugação de pilastras básicas da ética, do pensamento e do fazer poético de EZ.
Pound é o poeta mais anticapitalista, mais participante deste mundo cristão ocidental. Porém - mais importante ainda - é pagão, pois, sabe ele, ser pagão traduz o destino ontológico da humanidade. No plot dos Cantos - graças a Deus - Cristo perfaz apenas uma ponta, falando em termos de cinema. O paganismo, sabia Pound, é um estar natural; o cristianismo, artificial. Contra o paraíso da hipocrisia, que é o mundo assim chamado de cristão, Pound colocou a sabedoria de Kung, de Dante. E, last but not least, os poetas, que não são isso nem aquilo. Apenas fazem.
A tradução completa dos Cantos varou madrugadas. Uma só pessoa numa ilha cercada por instigações e dúvidas de todos os lados. Por isso, trata-se de uma obra discutível, polêmica, mutante. Aliás, assim era Pound."
Revista Manchete
07/12/1985