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Observações sobre o cinema

Susanne K. Langer

nota: o pensamento de susanne langer no terreno dos problemas de ordem estética é dos mais importantes na atualidade, principalmente no que se refere ao desenvolvimento de uma filosofia da arte.
a junção forma em tôdas as suas contingências de tempo e de espaço, como propulsionadora da criação do objeto virtual - a obra de arte - encontra nela uma intérprete eficiente em todos os sentidos.
nascida em new york, descendente de alemães, susanne langer é, no momento, professora de filosofia no connecticut college.
são as seguintes as suas obras, publicadas até agora: "the practice of philosophy"; "introduction to symbolic logic"; "philosophy in a new key"; "feeling and form"; "problems of art".
o presente trecho constitui apêndice de "feeling and form", um dos mais valiosos volumes sôbre teoria da arte já aparecidos em nosso tempo.

J.L.G.

Eis uma nova arte. Por umas poucas décadas parecia nada mais que um novo artifício técnico na esfera do drama, um outro método de preservar e expor os espetáculos dramáticos. Porém, hoje em dia, seu desenvolvimento já desmentiu tal conceito. A tela não é um palco e o que é criado dentro da concepção e realização de um filme não é uma peça. Ainda é cedo para se sistematizar qualquer teoria dessa recente arte, mas, mesmo em seu atual estado primitivo apresenta - além de qualquer dúvida, creio - não somente uma nova técnica, porém um novo processo poético.
Os pontos mais significativos para meu propósito são demonstrar que: 1) a estrutura do filme não é a mesma que a do drama e, na realidade, está mais próxima da narrativa; e 2) que sua potencialidade artística torna-se evidente apenas quando se introduz a câmera móvel.
A câmera móvel separa a tela do palco. A reprodução fiel da ação teatral, antigamente considerada como a única possibilidade artística do filme, doravante surgiu como uma técnica especial. O ator no cinema não é dirigido da mesma maneira que no palco, nem pelas convenções do teatro; o filme possui seu próprio terreno de ação e suas regras, e, na verdade, pode ser que, de certo modo, não exista o "ator". O filme documentário é uma invenção fértil e o desenho animado não envolve pessoas apenas "atuando".
O fato de que a película poderia se desenvolver até um elevado grau de magnitude como uma arte silenciosa, na qual a fala teria que ser reduzida a breves e bem espacejadas legendas, era outra indicação de que não se tratava apenas de simples drama. Usava-se a pantomima e os primeiros estetas do filme consideravam-no essencialmente como tal. Porém não se trata disso; o cinema absorveu a pantomima assim como o fêz com a fotografia.
Uma das mais notávels características dessa nova arte é que ela fornece uma impressão de onivoracidade, apta que está para assimilar os mais diversos materiais e transforma-los em seus elementos próprios. Mediante cada nova invensão - montagem, faixa sonora, tecbnicolor - seus devotos lançavam o brado de receio de que agora a sua "arte" se encontrava perdida. Desde que cada novidade passa, naturalmente, a ser de pronto explorada antes que ela própria esteja aperfeiçoada tecnicamente e é, ainda em estado bruto, também anunciada como uma sensação popular, através de uma enchente de realizações sem sentido, que apenas servem para constantemente reabastecer as possibilidades do espetáculo rendoso, existe usualmente uma maré de ninharias associada com qualquer progresso de importância. Mas a arte prossegue e tudo absorve: dança, patinação, drama, o pictórico, desenho animado, música (o cinema quase sempre requer a música). Permanece contudo uma arte poética, não se tratando, entretanto, de qualquer uma conhecida anteriormente; propicia a ilusão original - a história virtual - à sua própria maneira. Isso é, essencialmente, a forma do sonho, não querendo dizer que seja o mesmo imitado ou que alguém seja introduzido num dia de sonho. Apenas ocorre de modo idêntico ao que a literatura invoca a memória ou nos faz crer que estamos relembrando. Um método artístico é um método de aparência. A ficção existe "como" a memória, dentro do critério em que é projetada para compor uma forma experimentada e consumada – um "passado", não o do leitor nem o do escritor, embora o último possa reivindicá-lo (que, assim como a utilização da lembrança atual no papel de modêlo, é um recurso literário). O drama é "como" uma ação-causa, a criar uma experiência totalmente iminente, um "futuro" pessoal ou destino. O cinema é "como" o sonho no que se refere ao método de sua apresentação: gera um presente virtual no sentido de uma aparição direta, que é justamente o que ocorre no sonho.
A mais saliente característica formal do sonho é a de que a pessoa que sonha está participando dentro do mesmo. Mudam-se os lugares, as pessoas agem e falam, transfor mam-se ou desaparecem - fatos emergem, situações se desenvolvem, objetos vêm à vista dotados de estranha importância, coisas extrema e habitualmente valiosas ou horripilantes, e podem todos serem substituídos por outras que se relacionam a êles, em essencial, pelo sentimento e não pela proximidade natural. Mas quem sonha está sempre "lá", sua capacidade de comunicação está, assim falando, além de todos os eventos. Algo pode acontecer em volta dêle ou se desenrolar perante seus olhos; pode agir ou querer agir, sofrer ou contemplar; porém, o "imediato" de tudo num sonho é o mesmo para êle.
Essa peculiaridade estética, essa relação com coisas enxergadas caracteriza o processo do sonho; é o que o filme leva a cabo e, através do qual, cria um presente virtual. No que tange às suas relações com as imagens, ação e acontecimentos que constituem a história, a câmera ocupa o lugar do indivíduo que sonha.
Nós somos comumente agentes num sonho, mas a câmera não o é. Ela (e seu complemento, o microfone) não se encontra dentro da tela e sim no ôlho da mente. Nem também o filme (se se trata de arte) se assemelha ao sonho em sua estrutura. É uma composição poética, orgânica, comandada por uma visualização concebida em definitivo e não condicionada por impulsos emocionais atuantes.
A básica abstração pela qual a história virtual é produzida no processo do sonho é o imediatismo da experiência, ou como Mr. Sowers o denomina, "autenticidade". Isso é que a arte cinematográfica abstrai da atualidade, de nosso devanear atual.
O espectador de uma película vê com a câmera; seu centro de gravidade se move com ela, sua mente está incisivamente presente. A câmera é seu ôlho (como o microfone é seu ouvido - e não há razão para que o ôlho e o ouvido da mente estejam sempre juntos), Êle toma o Iugrar da pessoa que sonha, porém num sonho perfeitamente objetivado - isto é, êle não faz parte da história. A obra se constitui na semelhança de um sonho, um desenrolar uno e contínuo, significando "visão".
Concebido dessa maneira, um bom filme é uma obra de arte, sob todos os critérios que se aplicam a tal configuração. Sergei Eisenstein fala de bons e maus filmes como, respectivamente, "vital" e "sem vida"; refere-se aos "shots" como "elementos" que se combinam em "imagens", impossíveis de se apresentar "objetivamente" (Eu as denominaria de impressões poéticas), mas por outro lado, são elementos maiores compostos de "representações", quer seja por intermédio da montagem, da interpretação simbólica ou quaisquer outros meios. O todo é governado pela "imagem inicial e corrente que originariamente se insinuou ante o artista criador" - a matriz, a forma determinadora; e é isso (e não, note-se a emoção do artista) que deve ser evocado na mente do espectador.
Ainda Eisenstein acreditava que o espectador de um filme era, de certa maneira, especialmente chamado a usar sua imaginação a fim de criar sua própria experiência a partir da história (1). Aqui está, penso, uma amostra da poderosa visualização que o cinema leva a efeito, não de coisas que passam, porém da dimensão pela qual elas se desenrolam - uma imaginação virtual e criadora; pois "parece" criação de alguém, uma direta experiência visual, uma "realidade sonhada". Qual muitos artistas, êle empregou a experiência virtual para os fatos mais óbvios.
O fato de que o filme não é uma obra plástica e sim uma visualização poética esta de acôrdo com o seu poder de assimilar os mais diversos materiais e transformá-los em elementos não-pictóricos. Assim como o sonho, recorre e acumula todos os sentidos; a sua abstração básica - a aparição direta - não se processa apenas por meios visuais, embora êstes sejam relevantes, mas por palavras, que pontuam a visão, e por música que sublinha a unidade de seu "mundo" em movimento. Necessita de muitos, e muitas vêzes convergentes, meios para gerar a continuidade da emoção que se desenvolve consigo, enquanto sua visão vagueia pelo espaço e pelo tempo.
É sabido que Eisenstein arrebanha seus materiais para discussão mais a partir da poesia épica que da dramática; mais de Pushkin que de Chekov, de Milton que de Shakeaspeare. Tal nos faz retornar ao que foi dito anteriormente, que a novela rapidamente proporciona mais de si à dramatização do écran do que o drama. A verdade é, creio, que a história narrada não requer tantas desvirtuações para surgir na tela, porque não possui nenhum contexto próprio de espaço fixo, como o tem o palco; e uma das peculiaridades estéticas do sonho, à qual o filme recorre, é a natureza do seu espaço. Eventos de sonho são intervalos - muitas vêzes intensamente em conexão com o espaço - espaciais, estradas sem fim, gargantas sem fundo, coisas demasiado altas, demasiado perto, demasiado longe - mas não se orientam dentro de nenhum espaço total. O mesmo se aplica ao filme e o difere, apesar de seu caráter visual, das artes plásticas: o seu espaço móvel. É sempre uma ilusão secundária.
A relação - num modo bem similar, de fato - entre o cinema e o sonho tem sido notada por várias pessoas, às vêzes por razões artísticas, outras não. R. E. Jones reparou sua liberdade não apenas da restringência espacial, mas também da temporal. "O filme", disse, "são nossos pensamentos tornados visíveis e audíveis. Êles fluem numa veloz sucessão de imagens, precisamente como os nossos pensamentos, e sua velocidade, com seus "flash-backs" - qual súbitos retornos a tona de jatos da memória - e sua transição abrupta de um assunto a outro, se aproxima muito estreitamente da velocidade de nosso pensamento. Possuem o ritmo da corrente do pensamento e a mesma habilidade maleável de se mover para frente ou para trás no espaço ou no tempo... Projeta o pensamento puro, o sonho puro, a vida interior pura".
A "realidade sonhada" pode mover-se na tela para diante e para trás porque, na verdade, se trata de um presente virtual - ubíquo e eterno. A ação do drama segue inexoravelmente para a frente porque cria um futuro, um destino; o processo do sonho é um infindável agora.

(1) ...o espectador é conduzido através de um ato criador, no qual sua individualidade não fica subordinada à do autor, mas é descerrada mediante o processo de fusão com a intenção do autor, tal como a individualidade de um grande ator se conjuga com a de um grande dramaturgo, na criação de uma clássica imagem cênica. De fato, todo espectador... cria uma imagem, de acordo com a orientação representativa sugerida pelo autor, levando-o à compreensão e experiência de seu tema. Essa é a mesma linguagem que foi planejada e criada pelo artista, porém ela é, ao mesmo tempo, criada também pelo próprio espectador, - ''Film Sense".

Jornal do Brasil
28/07/1957

 
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