Retrato de uma dama
Tuas coxas - macieiras
Cuja flôres roçam o céu.
Que céu? O céu -
onde a sandália de uma dama
pendurou Watteau. Os teus joelhos
são uma brisa austral - ou
rajada de neve. Ora! que
espécie de homem era Fragonard?
- como se isso a alguma coisa
respondesse. Ah, sim - sob
os joelhos, já que o tom
goteja dêsse modo, diga-se
um daqueles brancos dias de verão,
a longa relva dos tornozelos
teus tremula sôbre a praia -
Que praia?
a areia adere a meus lábios -
Que praia?
Ah, pétala talvez. Como
eu saberia?
Que praia? que praia? .
Eu disse pétalas de macieira.
Dr. Williams, Bill ou Bull ( oomo o chamava, no último caso, o seu amigo Ezra Pound, com o qual manteve grande correspondência), morto há alguns anos, foi, dos poetas mais instigantes da literatura moderna. Ainda, usando a classificação poundiana, foi inventor, foi mestre e até
starter of crazes. Era um poeta respeitável, que experimentou bastante, em tudo: lírica ou épica, "participãção" ou "intimismo'', a imagem pura ou o coloquial, enfim, fanopéia ou logopéia. O homem dos "achados" ocasionais, das soluções do momento.
William Carlos Williams, tal como o Garcia Lorca das
Canciones, foi um poeta especialista no poema minuto, curto, conciso, às vêzes, quase-
haikais. E criava o seu ritmo
stacatto, como expert no
enjambement. Sem falar nos parênteses, tmeses, travessões. E, assim, como Paul Klee concebia os títulos para seus quadros, no caso de "Bull", o título de seus poemas nada tem do mero ato de etiquetar, mas é um elemento da própria peça, entra em conflito dinâmico - por justaposição - com o poema.
A busca de uma objetividade rarefeita. ''Deixe o metafísico tomar conta de si mesmo, as artes nada têm a ver com isso." "Nada há de sentimental na máquina e: um poema é uma pequena (ou grande) máquina feita de palavras". "Quando digo que não existe nada de sentimental num poema, quero dizer que não pode haver, nêle, nenhuma parte, como em qualquer outra máquina, que seja redundante." "Não é o que se diz que importa como obra de arte e, sim, o que se faz, com tal intensidade da perceptiva, que a obra vive com um movimento intrínseco próprio, a constatar a sua autenticidade". "Não há poesia de mérito sem invenção formal, pois é na forma implícita que as obras de arte consumam o seu sentido exato, no qual mais se parecem com a máquina, no sentido de dar à linguagem a sua mais alta dignidade, sua iluminação no âmbito nativo".
Retrato de uma Dama é um dos momentos mais felizes (e talvez mais herméticos) da logopéia (a dança do intelecto entre palavras) em língua inglêsa. O retrato apenas existe no título e, se o poema inicia-se com uma descrição (as coxas como macieiras roçando o céu), logo, a partir da terceira linha, emerge um diálogo hipotético, carregado de
wit, de invocações culturais, intelectuais, quando já estamos numa espécie de clima entre o absurdo ou o non-sense. Mas não é isto o que Williams procura, a rigor. O seu retrato tem muito a ver com o espírito de fragmentação dos retratos cubistas, na ala racional, ou com o do surrealismo, na ala não-racional do pensamento, Idílio irônico, o "lirismo" a ser minado por dentro, um mundo de papéis pintados, cujos autores poderiam ser Watteau ou Fragonard, com chispas posteriores, vitorianas ou pré-rafaelitas. Notar o jôgo feito com os travessões e os
enjambment arrojados, num sincopar de cortes sucessivos, a lembrar inclusive a técnica cinematográfica, quando imagens e diálogos díspares são montados, quase no ritmo da
machine-guncut.
O Portrait of a Lady de Williams é também contrapartida de um tema presente na obra de Pound,
Portrait D une femme (o qual também já traduzimos e publicamos, primeiramente no CORREIO DA MANHA e, depois, na antologia de Pound, editada pela Ulisséia), e na de T. S. Eliot,
Portrait of a Lady (já traduzido há bastante tempo por Paulo Mendes Campos). Mas, sem entrarmos num julgamento de valor, as peças de Pound e Eliot são mais descritivas, apesar da pujança de dicção e dos
touchstones do primeiro ("your mind and you are our Sargasso Sea" ou esta jóia da imagem conceito: "uma inteligência média com um pensamento a menos cada ano") ou das sutilezas e da finura de "atmosfera" do segundo. De qualquer modo, todos êsses retratos são descendentes da técnica e dos efeitos de Jules Laforgue, o pai moderno da Iogopéia: (é só ver o exemplo de poemas lapidares, como
Notre Petite Compagne ou
Une Autre Complainte de Lord Pierrot, ambos já traduzidos por Augusto de Campos), revelado por Ezra Pound aos próprios franceses, enquanto (de acôrdo ainda com EP) o pai geral seria Propertius.
WILLIAMS: POEMAS CURTOSEm apêndice ao
Retrato de uma Dama, publicamos a tradução de alguns poemas curtos de WCW, cartão de visitas de sua originalidade e técnica apurada:
O PoemaTudo está
no som. Uma toada.
Raramente uma canção. Devia
ser uma canção - feita de
minúcias, vespas,
uma genciana - algo
imediato, tesoura
aberta, olhos
de uma dama - despertando
centrífuga, centrípeta.
O Prato de FrutasA mesa não descreve
nada: quatro pernas, pelas quais
torna-se uma mesa. Quatro linhas,
pelas quais torna-se uma quadra
o poema que exalta o prato
de frutas, se dizemos que é como
uma mesa - como descreverá
os conteúdos do poema?
Prelúdio ao InvernoA maripôsa sob as goteiras
com asas como
a casca de um tronco, estende-se
em silêncio simétrico.
E o amor é uma curiosa
coisa suavemente alada
imóvel sob as goteiras.
Uma Espécie de CançãoDeixe a serpente espreitar sob
sua moita
e a escrita
ser de palavras lentas e rápidas, afiadas
para ferir, quietas no esperar,
insones.
- pela metáfora, reconciliar
o povo e as pedras.
Compor. (Não idéias
mas coisas) Inventar!
Saxífraga é minha flor que rompe
as rochas.
A CoisaCada vez que soa
penso que é para
mim, mas não é
para mim nem para
ninguém, meramente
soa e, rigorosamente,
atendemos juntos
nós, êles e eu.
Nota: Vale reparar que
O Poema,
O Prato de Frutas e
Uma Espécie de Canção refletem aquela vertente do poema sôbre o poema, tão comum na poesia moderna.
Prelúdio ao Inverno impõe a concisão no entrechoque de duas quadras, a 1ª, descritiva, a 2ª, daí, conceitual. Quanto a
A Coisa, em sua abstração, invoca-nos algo, hoje, bem sugestivo: algo como o monólito de Kubrick e Arthur Clarke.
nota e tradução de José Lino Grünewald
Correio da Manhã
24/11/1968