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Eduardo Souto: Manancial de Música

A noite entra na agonia
E os primeiros raios
Na moldura do horizonte
Iniciam seus ensaios,
Doura-se o monte,
E os ramos mais felizes
Os que estão mais alto
Pintam-se em matizes
No cimo do planalto
Sai da sombra um nôvo dia.
E a luz da madrugada
Entrando suavemente na floresta
Beija os ninhos e esta festa
Desperta os passarinhos
E envolve velhos troncos
Vindo através das folhagens
E grita e os pios, uivos, guichos, roncos
Em acordes selvagens
Anunciam a alvorada

Nesses cantos
Sob o sol da manhã
Em linda festa pagã
Escorre a vida cheia de encanto
Que transborda
Numa chuva de côres
E entre os vales sonhadores
A montanha acorda.

Para criar o charme silvestre, no requinte de uma ingenuidade imagétíca, foi elaborada posteriormente esta letra de Francisco Pimentel, gravada na interpretação de Sílyio Caldas, daquela que constitui a mais famosa página de um dos nossos grandes compositores populares:
O Despertar da Montanha. Seu autor: Eduardo Souto. Dentro dêsse âmbito, forjaram suas músicas um mundo, amplo, dos mais rasgados: sambas e marchinhas carnavalescas, canções, peças sertanejas, valsas, tangos, rag-times, maxixes etc. Mas não só isto: procurou também a grandiosidade orquestral, compôs na faixa binária (Hino a João Pessoa, Hino à Legião Mineira, e o Glorioso, hino do Botafogo FC). Em muitas características, foi uma espécie de Ary Barroso, surgido mais de um decênio antes. Vasco Mariz, em A Canção Brasileira, diz que "em parte considerável de sua obra aflorou os limites da música erudita e, por isso, ganhou uma posição intermediária entre os dois setores artísticos". Estaria oscilando entre uma espécie de Ernesto Nazareth e Sinhô. Deixou uma bagagem de composições das maiores em nosso cancioneiro.

Algumas das marchinhas e sambas de Eduardo - muitos dêles de sátira política – marcaram época, nos twenties cariocas, ou na primeira parte do decênio dos trinta. Há, por exemplo, o célebre Voronoff, gravado por Frederico A. Rocha; O Bicho Falou e A Vaca Futurista, lançados pelo cantor Artur Castro; o chôro Mesmo Assim e a chamada chula baiana, Pemberê, gravados por Baiano; a marcha Batucada, em parceria com João de Barro, gravada por Mário Reis: ou a marcha Palpite, com letra de Noel Rosa, apresentada por Chico Alves: “Palpite! Palpite! / nasceu no crânio / de quem teve meningite / Foste linchado lá num samba em Catumbi / porque tocaste no pandeiro o Guarani / Num dia dêstes perguntaste ao condutor / se os bondes passam pela Rua do Ouvidor/ Ser palpiteira neste mundo é tua sina / vendeste o carro pra comprar a gasolina". Chico Alves, aliás, na sua primeira fase da Odeon, gravou muitas melodias de Eduardo Souto, entre as quais a excelente marchinha Seu Doutor, com a orquestra Pan-Americana: "O pobre povo brasileiro / não tem, não tem, não tem dinheiro / o ouro veio do estrangeiro / mais enterrou o tal cruzeiro / ó seu doutor, ó seu doutor / não zangue não, nem dê o cavaco / ó seu doutor, ó seu doutor / viver assim é um buraco / Quem sobe lá para o poleiro / esquece cá do galinheiro / só pensa no seu companheiro / a fim de ser o seu herdeiro". E gravou um admirâvel samba, na outra face, quando Eduardo fazia usar o contraponto do côro, à voz do cantor, repetindo sempre a expressão "é sim senhor". Trata-se de um samba político:

Ele é paulista
- é sim senhor
Falsificado
- é sim senhor
Cabra farrista
- é sim senhor
Matriculado
- é sim senhor
Ele é estradeiro
- é sim senhor
Habilitado
- é sim senhor
Faz do cruzeiro
- é sim senhor
Ovo dourado
- é sim senhor

Vem vem vem
Prá ganhar vintém
Vem Seu Julinho, vem
Aproveitar também.

Ainda, na voz de Chico Alves, tivemos músicas suas como a marchinha humorística É Sopa (17x3), o samba É no Tôco da Goiaba, gravado em dupla com Aracy Côrtes, as marchas No Reinado da Alegria e Digo Já, e o samba-canção Olhos Fatais.

No terreno das canções românticas, ou da valsa de ritmo marcado, deixou belas páginas. A canção Eterna, por exemplo, é daquelas, sob o aspecto puramente melódico, das mais bonitas no gênero. Foi tremendamente valorizada por uma gravação, onde a voz de Francisco Alves aparecia num dos seus momentos de maior contenção e limpidez, dizendo os longos versos: "Quando no céu / de estrêlas prateado / fito extasiado, / triste o meu olhar, / e penso em ti / morena do meu sonho / sinto tristonho / o queixume a exalar / eu tenho então / minh'alma invadida/ por um ciúme / atroz a torturar / porque a fitar o céu / pergunto ao negro manto / para quê te amo tanto / se só sabes desprezar / Eu oiço então o cascatear daquela fonte / oiço o murmúrio do riacho sob a ponte / enquanto a fonte despeja as suas águas / em mim transborda o amor num caudal de mágoas / se algum dia tu chegares a amar / tragar o fel desta silente triste dor / tu sentirás, como jamais sentiste / a dor pungente e triste / do náufrago do amor / Tu tens mulher / um coração de gêlo / e o negror do teu lindo cabelo / fazem de ti / conjunto encantador / pois nos parece tôda feita para o amor / quando eu morrer / talvez tu chorarás / ouvindo alguém / esta canção cantar / então direi a ti mulher / que eu amei tanto / que nem sequer não valho o pranto / que a dor vem mendigar". E há outras canções, como Feiosa, Olhos Brejeiros, Se Eu Pudesse Esquecer-te, Ideal do Caboclo, etc.

E as valsas vibrantes de Eduardo: Sonhei, Sonho, Pourquoi-pas?, Sugestões de um Olhar, Nuvens, O Que os Teus Olhos Dizem ou Eu Vivo Assim, com outra excelente transposição vocal de Chico Alves, de uma letra bem estranha, no arrôjo das conotações místicas amorcalvário: "Foi nesta cruz / dos braços teus / que o amor, qual por Jesus / crucifiquei / e os versos meus / em lágrimas cantei / Se fui rabi / por teu amor / e a lágrima verti / cheio de dor / darei perdão / à tua ingratidão / Jesus perdoou também / como eu te perdoarei / porém, lá muito além / chorando, querida / talvez te bendirei / talvez, quem nos dirá, / ressuscitando a vida, / o nosso amor reviverá / Não sei dizer / qual a razão / nem posso compreender / esta paixão / Tamanha é a dor / que já nem sei se é amor / eu vivo assim / dentro da luz / tateando a escuridão / sem nada ver / sonhando assim / quero poder morrer".

Os hinos de Eduardo Souto são vários. Temos aquêles a João Pessoa, à Legião Mineira, ao Glorioso ou aquela marcha-rag-time, O Bandeirante do Espaço, dedicada à aviação brasileira, com versos de Bastos Tigre: composta em 1921:

Está a cidade sob o império
De uma geral satisfação
Tem o Brasil neste hemisfério
Graças de Edu ao raid aéreo
O cinto de ouro da aviação
É já São Paulo delirante
Aclama o seu Jéca Tatu
Que o azul cortando, adiante, adiante
Do espaço é um novo bandeirante
Novo Fernão Paes Leme - Edu.

Nas asas frágeis do aeroplano
Leva a expressão nobre e gentil
Do sentimento soberano
Da paz do mundo americano
E da amizade do Brasil
A intriga baixa e pequenina
Que zumbe aqui, que zumbe lá
Vista não é por pequenina,
Lá do alto espaço onde domina
A luz que espanca a treva má.

Chaves, abrindo a porta aérea,
A jorros deixa entrar a luz
E pela escampa estrada etérea
Fonte de amor a ninfa Egéria
Ao povo amigo êle a conduz.
De lá, de cá, vozes amigas
Fonte de amor a ninfa Egéria
Ao povo amigo êle a conduz.
De lá, de cá, vozes amigas
Ressoam no ar - bravo rapaz
Sem diplomáticas intrigas
Povos irmãos, agora ligas
Num laço alvíssimo de paz.

Descendente do Visconde do Souto (seu avô), Eduardo Souto nasceu em Santos - São Paulo - em 14 de abril de 1882. Aos seis anos já tocava piano e conhecia algo de música. Aos 11 anos, vem para o Rio de Janeiro e, já aos 14, compunha a sua primeira valsa, Amorosa. Era estudante da Escola Politécnica e interrompeu o curso, necessitando arranjar emprêgo, indo trabalhar num estabelecimento bancário. Em 1917 inaugurou, na Rua Gonçalves Dias, a conhecida casa de música Carlos Gomes, que depois passou para a Rua do Ouvidor. Em 1919, lança o Despertar da Montanha, sua obra mais famosa. Foi ampliando as suas atividades: organizou orquestras, corais, participou das peças teatrais musicadas e foi diretor artístico da Odeon e da Parlophon. Ainda no apogeu de sua carreira de compositor, regente e orquestrador, afastou-se dos meios musicais, voltando a trabalhar como contador. Faleceu aos 60 anos de idade, em 18 de agôsto de 1942. Mas ficou uma obra respeitável, no âmbito do cancioneiro popular e, mesmo, no da música ligeira. Existem alguns long-playings reeditando as suas composições, como aquele gravado na Sinter pelo pianista Mário de Azevedo, ou um outro, apresentado pela Festa, com o seu filho Nelson Souto, interpretando, também ao piano, canções românticas e peças dançantes de autoria do pai.

Eduardo Souto - composições: Eterna; Feiosa; Sonhei; Voronoff; Pemberê; Batucada; Palpite; A Vaca futurista; O bicho falou; Glorioso; Hino da legião mineira; Hino a João Pessoa; O bandei rante do espaço; No mundo da lua; Espanta o bode; É sim senhor; “Seu" doutor; "É sopa" (17x3); Goiabada; Só teu amor; Eu vou-me embora; Manda buscá; Pois não; Dor sem consôlo; É no tôco da goiaba; No reinado da alegria; Digo já; Eu vivo assim; Verão; Inverno; Outono; Primavera; Olhos fatais; Mesmo assim; Jenipapo; Olhos brejeiros; Ideal de caboclo; Se eu pudesse esquecer-te; Canção dos pescadores; Cantiga para tenor; Sonho; Pourquoi-pas?; Sugestões de um olhar; A ternura do mar; Evocação; Visão de Pierrot; Tristeza; Nuvens; O amor; Viver dentro de um sonho; O que os teus olhos dizem; Zaaba; Jagunço; Brincalhão; O suco; Presidente Wilson; Sul-americano; Ontem à noite; Guanabara; George Walsh; Marabá; Adeus guitarra "amiga”; E a pobre guitarra morreu; O despertar da montanha; O Walsn; Marabá; Adeus guitarra “amiga”; E a pobre guitarra morreu; O despertar da montanha; O pranto do fadista; Do sorriso da mulher nasceram as flôres; Conheceu papudo?; Não mexas comigo seu Honorato; Sustenta a nota seu Bandeira; Relembrando; Cacareco; Íbis; O puladinho; Seu Derfim tem que vortá; Para todos; Isto é bom; Um baile em Catumbi; Saudades da cachopa; Que massada!; No rancho; Fogo de paia; Tira cisma; Capichaba; O Manuel e a Maria; U cumpadri di Araxá; O poeta do sertão; No batuque; Jesus e a viola; Um chôro na praia; Caboclo magoado.

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20/05/1965

 
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Carlos Galhardo: O Homem da Valsa
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Eduardo Souto: Manancial de Música
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Estética do Fado
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