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Cascata: Jorrar de Bossa

A presença de J. Cascata foi das mais sensíveis, no período de apogeu do samba de bossa, do morro, do estilo breque, bem como das serestas ou serenatas. Pode-se mesmo dizer que, sem a sua principal parceiro – Leonel Azevedo – o prato de sustento no arranque inicial para o sucesso de um extraordinário cantor, como o foi Orlando Silva, não teria sido o mesmo. Uma grande parte de valsas, sambas e canções que ajudaram a trazer aos píncaros o nome do cantor das mutidões, traziam a assinatura de Cascata. Do espírito do trovador ao luar, do cancioneiro melancólico que chora a amada, até o requebrar esfuziante do samba descendo para o asfalto, o seu talento absorveu tudo de mais autêntico, vertendo em criação. Não foi um renovador de ritmos, de recursos instrumentais ou timbrísticos, mas sempre figurou na linha de frente daqueles que melhor traduziram uma fase de fastígio. Seu fim de carreira foi o mais natural e consagrador: unido à velha guarda (de Pixinguinha, Donga, Almirante, Alfredinho, Bide, João da Baiana e outros), quando o reaparecimento deste conjunto de grandes veteranos deu uma aula de música popular autêntica no marasmo daquele período que antecedeu o impacto reestruturador da bossa-nova. E, com ela, viu recriadas algumas de suas composições, como o caso da marcha-rancho Depois que Você Me Deixou, lançada há mais de trinta anos por Orlando Silva: “A minha vida foi um roseiral em flor/ já fui feliz, já tive um grande amor/ cantei lindas canções,/ fiz versos ao luar/ bebi das ilusões…”. Ou o caso de Nosso Ranchinho, em parceria com João da Baiana: “Nosso ranchinho assim tava bom/ gente de fora entrou trapaiô…”
Alguns sambas de Cascata marcaram época, em sua maior parte, na voz de Orlando Silva, quase insuperável como intérprete e como virtuose vocal. Mesmo o chamdo samba de breque – que fez o nome e a glória de Moreira da Silva – teve no criador de Para Deus Somos Iguais uma contribuição substancial. É só lembrar o exemplo de Minha Palhoça, cantando por Sílvio Caldas, evocando aquele appeal brejeiro de um paraíso agreste, na base da filosofia de uma amor e uma cabana (“Ah, se tu quisesses morar na milha palhoça…”), com todas as dádivas gratuitas da natureza, ou, então, o espetacular Lágrimas de Homem, com Orlando Silva sacudindo as suas multidões, com pausas e silabados notáveis: “Lágrimas de homem são sentidas/ e as das mulheres fingidas/ pois não comprendem a alcance que elas tem/ são lágrimas sinceras/ derramadas interiormente/ que calam fundo na gente/ revelando a saudade de alguém/ Amor! Eu dei-te tudo em quantidade/ eu dei-te um nome e quase satisfiz a tua vaidade/ trabalhava tanto…/ tudo aquilo que pedias eu te dava/ e no entanto na surdina/ procurando minha ruína me enganavas/ e trabalhava como um louco…”
Já no samba propriamente assimilado numa definição generalizante, temos inúmeras composições a registrar: Quem Foi, uma interpretação de Carlos Garlhardo, também em sua fase de apogeu: “Quem foi que causou todo o mal que nos aconteceu?/ quem foi o culpado de tudo isso afinal?/ quem foi? Me responde, se acaso fui/ ou se foi a maldita tendência que sempre tiveste pro mal/ eu peço, eu rogo, eu imploro a Deus sem temer/ que castigue, que faça pagar a quem de nós que errou…”; Um Juramento Falso, composto juntamente com Leonel Azevedo: “Um juramento falso/ faz a gente sofrer/ um sorriso fingido/ nos lábios de uma mulher/ quando se tem amizade/ sofre-se dor de verdade/ sempre em busca da felicidade”, um dos grandes hits de Orlando Silva, a outra face da gravação original do célebre Lábios que Beijei; Meu Romance, um dos grande sambas que registra o nosso cancioneiro, novamente valorizado pela voz do cantor das multidões: “Em baixo daquela jaqueira/ que fica lá no alto majestosa/ de longe, se avista a turma da mangueira/ quando se engalana com sua pastoras, formosas…”
Entre as valsas e serestas são numerosos os sucessos que criou. De início cabe lembrar uma das serestas mais bonitas que compos, em parceria com Manézinho Araújo, gravado na antiga Colúmbia por Sílvio Caldas: “Vai alta noite/ nada resta do dia que fugiu/ a natureza ao ouvir o meu queixume/ maliciosa, encheu-se de ciúme/ sabendo que dormias/ também dormias/ somente a lua que é amiga de quem ama/ e canta a trova/ brilha no céu no auge do esplendor/ maisnuma prova/ de que a lua nova/ nunca esquece um trovador/ E sempre a velha lua a incentivar/ aqueles que querem cantar/ para os ouvidos de alguém/ olho as estrelas cintilantes e serenas/ no jardim vejo açucenas/ na tua janela, ninguém/ desperta ó querida e ouve a prece/ que, terno, te oferece/ o pobre peito meu/ abre a janela e vem ouvir o teu cantor/ e manda ao menos um favor/ a graça de um sorriso teu”. É Mágoas de um Trovador, com o caboclinho querido numa de sua maiores exibições dos dotes vocais. Lábios que Beijei foi talvez a sua música mais famosa, composta com Leonel Azevedo. Foi um dos degraus-chave para a consagração de Orlando Silva: “Tua imagem permanence imaculada/ em minha retina cansada/ de chorar por teu amor/ lábios que eu beijei/ mãos que eu afaguei/ volta, dai lenitivo à minha dor”. Mas existem também outras serestas de grande êxito, como Mágoas de Caboclo (“Cabocla, o teu olhar está me dizendo/ que você está me querendo/ que você gosta de mim/ Cabocla, não lhe dou meu coração/ você, hoje, me quer muito/ amanhã não quer mais não…”) ou História Joanina, esta última gravada primeiro por Orlando Silva e, posteriormente, por Nelson Gonçalves, acompanhado pelo conjunto de Benedito Lacerda: “Foi numa noite de São João/ junto à fogueira/ que eu conheci a cabocla mais Linda deste sertão/ seus olhos negros me olharam de tal maneiro/ que nunca mais teve sossego o meu pobre coração/ adormeci e implorei em doce prece/ que São João me fizesse/ feliz junto ao meu amor/ que essa cabocla numa mais me abandonasse/ sempre junto a mim ficasse/ me querendo ver feliz”. Mais tarde, em sua última fase, Orlando Silva ainda lançaria composições de Cascata e Leonel Azevedo, na etiqueta Copacabana ou, de novo, na Odeon, como é o caso, por exemplo, de Pedras Dispersas (com algumas imagens insólitas, como a expressão satiras de ciúme) ou De Que Vale a Vida Sem Amor. E, finalmente, vale frisar que também Chico Alves incorporou J. Cascata e Leonel Azevedo ao seu repertório, com Minha História, gravado em 1938.
Álvaro Nunes (J. Cascata) nasceu em Vila Isabel, à Rua Pereira Franco, a 23 de novembro de 1912. Nasceu assim no chamado “berço do samba” e o seu pseudônimo – Cascata – foi-lhe inspirado pelos repuxos localizados, na época de sua infância, no famoso Boulevard. Desde garoto, vivendo na Vila, vivia também a música, o samba e suas bossas. Em 1929, compos uma marcha-rancho. Depois, foi companheiro de Noel Rosa e nota-se a influência deste ultimo no estilo de muitos de seus sambas. Cristóvão de Alencar levou-o para o radio e, lá, já aparecia com o pseudônimo: J. Cascata. Cascata, de início, dedicava-se a cantar e foi assim que conheceu o seu grande parceiro, Leonel Azevedo – tambeem cantando. A sua primeira composição a surgir em disco foi a valsa O Teu Olhar, gravada por João Petra de Barros. Logo depois, com a segunda, Minha Palhoça, lançada por Sílvio Caldas, veio o sucesso. E aí apareceu Orlando Silva, para levar os dois parceiros consigo, numa parceria da glória. Outros cantores vieram posteriormente a cantar composições isoladas de Cascata ou da dupla: Carlos Galhardo, Francisco Alves, Gastão Formenti, Odete Amaral etc. E também doou os seus êxitos para o carnaval. Mais tarde, em 1954, reorganizava-se a Velha Guarda e, com ela, estava o criador de Lábios que Beijei, cantando ou tocando afochê. Faleceu a 27 de janeiro de 1961, havendo sido enterrado no Cemitério de São Francisco Xavier.

J. Cascata – composições: Não Pago o Bonde; Nosso Ranchinho; Tristeza; Para Deus Somos Iguais; História Joanina; Mágoas de Caboclo; Juramento Falso; Lábios que Beijei; Jurei, mas fracassei; Sabe quem é? Você!; História antiga; Desilusão; Quero voltar aos braços teus; Depois que você me deixou; Lágrimas de homem; Não serás feliz; Beijando as tuas mãos; A que ponto chegastes; Pedras dispersas; Pra quê velho quer broto?; Escravo do amor; De que vale a vida sem amor?; Mágoas de um trovador; Minha palhoça; Eu e você; Maria; Símbolo sagrado; O teu olhar; Minha história; Ao cair da noite; Um sorriso, uma frase, uma flor; Que foi?; Samba triste.

Apresentamos, abaixo, a letra completa de “Meu Romance”, talvez o maior samba de Cascata e um dos nossos maiores, correspondendo àquela temática de glorificação da malandragem, muito comum nos grandes criadores, como Noel Rosa ou a dupla Ismael Silva – Nilton Bastos.

Embaixo daquela jaqueira
Que fica lá no alto majestosa
De longe, se avista a turma da Mangueira
Quando se engalana com suas pastoras, formosas
Oi, foi lá, quem é que disse, que o nosso amor nasceu
Na tarde daquele memorável samba
Eu me lembro, tu estavas de sandália
Com o teu vestido de malha
No meio daqueles bambas.
Nossos olhares cruzaram
E eu, prá te fazer a vontade,
Tirei fora o colarinho
Passei a ser malandrinho
Nunca mais fui à cidade
Prá gozar o teu carinho
Na tranquilidade.
E, hoje, faço parte da turma
No braço, eu trago sempre o paleto
Um lenço amarrado no pescoço
Eu já me sinto um outro moço
Com meu chinelo charló
E até faço calentia
E tiro samba de harmonia

Correio da Manhã
07/04/1965

 
Vogeler: resposta do tempo
Correio da Manhã 19/11/1964

Orestes: Poesia e Seresta
Correio da Manhã 16/12/1964

Benedito Lacerda: ou A Flauta de Prata
Correio da Manhã 30/12/1964

Cândido das Neves “Índio”: seresteiro da cidade
Correio da Manhã 06/01/1965

Joubert de Carvalho: o criador de "Maringá"
Correio da Manhã 10/02/1965

Carlos Galhardo: O Homem da Valsa
Correio da Manhã 10/03/1965

Freire Júnior: tempo de serenatas
Correio da Manhã 17/03/1965

Augusto Calheiros: A patativa do Norte
Correio da Manhã 31/03/1965

Cascata: Jorrar de Bossa
Correio da Manhã 07/04/1965

Patrício Teixeira: da modinha ao carnaval
Correio da Manhã 21/04/1965

Eduardo Souto: Manancial de Música
Correio da Manhã 20/05/1965

Heitor: prazer do samba
Correio da Manhã 05/10/1966

Estética do Fado
Correio da Manhã 14/05/1967

Samba: glória do malandro
Correio da Manhã 28/07/1967

Foi um Rio
Correio da Manhã 10/03/1970

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