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Augusto Calheiros: A patativa do Norte

Augusto Calheiros foi um dos cantores populares de voz mais poderosa que tivemos. Rasgava os espaços de tempo com aquele seu timbro peculiar, aquele silabar do norte, sertanejo, a voz obedecendo a todos os arranques. E, assim, foi até o fim da vida – um dos raros cantores que, face à erosão do tempo, não perdeu as suas características essenciais. Possuía um repertório, em parte, muito pessoal, recheado dos cocos, emboladas, toadas regionais e aqueles sambas de gosto do mato, roceiros, com a sua picardia, a sua brejeirice típica. Calheiros encheu, praticamente sozinho, uma faixa do nosso cancioneiro. Quando morreu, em 1956, deixou uma faixa desocupada e, conseqüentemente, a saudade. Pois sabia também, como poucos, valorizar a vivência, a interpretação da valsa e da seresta – gêneros dos mais apreciados pelo povo.

Foi o CORREIO DA MANHÃ quem impeliu Calheiros, com os Turunas da Mauricéa, no primeiro grande passo do sucesso nesta Capital. Aquele grupo, formado por ele, o cego Manoel de Lime (o único, que, já anteriormente, estivera no Rio), João Frazão, João Miranda e Romualdo Miranda, desembarcou aqui, em 5 de janeiro de 1927, e se hospedou na humilde casinha de um taifeiro de bordo, no bairro da Saúde. Traziam na bagagem, além dos instrumentos de música e as vestimentas regionais, o sucesso já alcançado em Recife. Foi lá, na capital pernambucana, que Mário Melo lhes denominara Os Turunas de Mauricéa, como alusão ao nome que Recife tomara nos tempos de domínio holandês, de Maurício de Nassau. Dias depois de terem chegado, Boabdil de Miranda Vareijão, “O Mirandela”, trouxe-o à nossa redação, onde fizeram uma exibição de seus números para Raul Brandão e outros redatores. Reconhecido o mérito dos Turunas, o CORREIO DA MANHÃ empenhou, com seu prestígio, junto ao empresário Viggiani, no sentido de que fosse cedido o velho Teatro Lírico para uma apresentação do grupo. Tudo isso, inclusive, vinha ao encontro do espírito do famoso concurso de música popular que patrocinava este jornal na época, o concurso “O Que É Nosso”. Viggiani aceitou, cedendo graciosamente o Lírico, para um espetáculo que, afinal, foi muito corrido. A apresentação estava marcada para 22 de janeiro, um sábado, e, em nossa edição de domingo anterior, no suplemento especial, surgia uma foto dos cinco rasgando a página de lado a lado. À direita da mesma página, deste 16 de janeiro de 1927, via-se um fac simile da partitura da valsa “Ave Maria”, de Erhotides Campos e letra de Jonas Neves, talvez o número de maior sucesso na carreira de Augusto Calheiros. Ainda no alto da página, sob a foto do grupo, sugia o anúncio: “Festa: O que É Nosso no Lyrico em Benefício dos Taunas da Mauricéa”. Mais abaixo, o texto do anúncio assim começava: “São cinco os TARUNAS DA MAURICÉA, cada qual mais extraordinário no seu gênero. Cinco artistas nascidos no sertão; alma de sertanejos, que se congregaram em Pernambuco para cantar o que é nosso e que, há dias, após uma excursão triunfal a Maceió e outras cidades, coroados em Recife, onde o povo lhes fez uma das mais belas ovação de que se tem lembrança no Teatro Santa Isabel, vieram ter, sem nenhum auxílio e interesse comercial, à Capital do País. Vieram confiados no valor de cada um. Cantores e tocadores geniais que tem o dom de arrebatar multidões.”
E depois, pelos dias da seguinte semana, saíam os anúncios normais do espetáculo, com frisa a 30 cruzeiros, poltrona a 6 cruzeiros e galeria a 3 cruzeiros. E veio o grande êxito. No palco do Lírico, de traje a rigor, ou com as roupas características, com seus pseudônimos – Patativa do Norte (Augusto Calheiros), Riachão, Guajurema, Piriquito e Bronzeado – os Turunas arrancaram o entusiasmo do público. A voz da patativa, João Mirando no bandolim e os outros três nos violões cumpriram um repertório longo e variado. Calheiros, nesse primeiro dia, contou a canção de Raul C. De Morais,
Na Praia (“Na praia, a vi sentada um dia/ bem trstemente a meditar...”), a valsa Único Amor, de Alfredo Medeiros e Armando Gayoso (“Quero te dizer querida/ nesta hora de partida/ toda a imensa dor,/ que me vai n’alma dolorida/ de pobre trovador”), a embolada de sua autoria e Luperce Miranda, O Pequeno Tururu (“Ôi balança o pequeno tururu/ ôi balança o pequeno de iaiá/ ôi balança o pequeno tururu/ ôi balança Benedito no ganzá”) e já mencionada valsa Ave Maria, cuja letra de Jonas Neves permanece na memória da cidade: “Cai a tarde tristonha e serena/ em macio e suava langor/ despertando no meu coração/ a saudade do primeiro amor/ um gemido se esvai lá no espaço/ nessa hora de lenta agonia/ quando os sinos saudosos murmuram/ badaladas da Ave Maria”. O sucesso foi tamanho que novos programas foram imediatamente organizados. E, ao grupo, alguns meses depois, vinha reunir-se, o famoso bandolinista Luperce Miranda.
Daí em diante, a carreia de Calheiros, cantor e também compositor, abriu-se para a conquista da glória. As canções de inspiração folclórica dos Turunas gozaram de enorme aceitação. É só lembrar que, no carnaval do ano seguinte – 1928 – a embolada Pinião, de altoria do próprio Augusto Calheiros, constituiu o maior sucesso: “Pinião, pinião, pinião/ ôi pinto correu com medo do gavião/ por isso mesmo sabiá cantou/ bateu assas e voou e foi comer melão”.
Passados alguns anos, desfez-se o conjunto Turunas da Mauricéa. O cantor continuou individualmente: teatro, cinema e principalmente rádio e as gravações. Foi o momento de se imortalizar nas gravações, com alguns números que vão para a antologia do nosso cancioneiro. Um dos exemplos mais poderosos é a canção Beleza do Sertão, música de Luperce Miranda, letra de Calheiros, em fluente redondilha maior: “Tem muita gente cantando/ belezas do meu sertão/ mas por certo tem faltado/ o amor à alma e à expressão”. Outra canção de autoria do cantor, em parceria com Manezinho Araújo, é a Seresta do Norte, um dos instantes mais vigorosos da pujante voz da patativa: “Ó lua cheia, só tu sabes o tormento/ de quem ficou no esquecimento/ e solidária com a seresta/ abre teu luar em festa/ diminui meu sofrimento”. De Calheiros também, outro êxito foi a sua composição, a embolada Samba do Caná: “Eu perguntei a meu mestre/ aonde era o Caná/ ele me arrespondeu/ que era do lado de lá...”.
A patativa do norte começou a gravar na Odeon, por volta de 1933, havendo feito um ligeiro interregno para, na Victor, lançar dois discos de músicas de Jararaca, Alma de Tupi e Céu do Brasil, o segundo em parceria do companheiro Ratinho com Henrique Vogeler, o criados do clássico Ai Ioiô. Depois, retornou à Odeon, lá ficando até 1945, quando passou novamente para a Victor. E, ficaram os seus números inesquecíveis: Revendo o Passado, a famosa valsa do Freire Júnior: “Recordar é viver/ diz o velho ditado/ recordar é sofrer/ saudades do passado”; Caboclo de Raça, a canção de Jeronymo Cabral e Jararaca: “Eu vivia lá no mato/ me banhava no regato/ onde quebra a cachoeira/ era a vida que eu amava/ toda a tarde descansava/ sob a sombra da palmeira/ quando a noite ia morrendo/ eu também ia gemendo/ com meu triste violão/ os meus versos ritmavam/ com as dores que falavam/ do meu terno coração”, também um dos ápices vocais de Calheiros; Casa Desmoronada, a canção de Antenor Borges e Pedro Fábio: “A voz mais perto foi chegando/ e a cabocla encantada foi ficando/ era um caboclo violeiro apaixonado/ que também foi condenado/ a viver sempre cantando/ a noite foi chegando de repente/ sangrando tristemente os olhos meus/ e quando amanheceu chamei por ela/ e ela não deixou nenhum adeus”, com o notável agudo no trecho “e ela”; Cantador misterioso, canção de Florêncio Santos, com a evocação melancólica estilizada no silabar sertanejo: “Vancê viu bem aquela estrada/ muito longe da roçada/ aonde passeu nós dois/ vancê viu bem lá para riba/ viu uma casinha metida/ lá no meio do cipó/ quando a lua está brilhando/ sai de lá um violeiro...”; Mané Fogueteiro, um dos melhores sambas de João de Barro, com a riqueza imagética naquela ambiência das músicas juninas: “E um dia encontrara Mané Fogueteiro/ com os olhos vidrados, de bruços no chão/ um tiro certeiro varara-lhe o peito/ na volta da festa do Juca Romão/ porém os que morrem de tiro conservam/ a última cena nos olhos sem luz/ um claro foguete de lágrimas frias/ alguém viu brilhando em seus olhos azuis”; a canção Flor do Mato, de Francisco Freitas e Zéca Ivo: “Era como a sertaneja/ de alma pura e sempre boa...”; a valsa-choro de José Evangelista, Serenata ao Luar: “Desperta, eu te peço querida/ ao som do meu canto plangente/ ao som triste da serenata/ que sempre consola que sente...”; e uma das mais conhecidas e belas páginas do cancioneiro do Brasil, a composição de Pedro Sá Pereira e Ary Pavão, Chuá-Chuá: “Deixa a cidade formosa morena/ linda pequena e volta ao sertão/ beber água da fonte que canta/ e se levanta do meio do chão/ se tu nasceste cabocla cheirosa/ cheirando a rosa do peito da terra/ volta para vida serena da roça/ daquela palhoça do alto da serra/ E a fonte a cantar: chuá-chuá/ e as águas a correr: chuê-chuê/ parece que alguém/ que cheio de mágoa/ deixasse quem há de dizer a saudade/ no meio das águas correndo também/ A lua branca de luz prateada/ faz a jornada no alto do céu/ como se fosse uma sombra altaneira/ da cachoeira fazendo escarcéu/ quando essa lua lá na altura distante/ loira ofegante no poente a cair/ dá-me essa trova que o pinho descerra/ que eu volto pra serra que eu quero partir...”, uma das canções que melhor expressa o anelo eufórico da serra e do sertão, na contingência de quem sofre de uma mecânica do cotidiano na cidade. Chuá-Chuá, foi também gravada por muitos interpretes, entre eles Francisco Alves, que cantou-a muito bem em ritmo de samba, num disco Odeon. Aliás, o rei da voz, no fim de sua carreira, gravou também aquela que talvez haja sido o maior sucesso da patativa do norte: a valsa Ave Maria. Calheiros, por seu turno, deu-se bem como interprete de valsa, até mesmo no estilo de salão. Veja-se o sucesso de Como és Linda Sorrindo, da dupla Gastão Lamounier e Mário Rossi (“Como és linda querida sorrindo/ és a minha mais linda ilusão/ o teu beijo é o meu sonho mais lindo/ e a ventura do meu coração”), 30 minutos, de J. Portella e Portello Juno (“Louco pelas ruas eu vivia/ a cantar sem alegria/ afogado na ilusão/ e assim eu ia o tempo passando/ a mim mesmo enganando”), Falando ao teu Retrato, de Jayme Florence e De Chocolat (“Na ilusão de um novo amor/ deixaste o nosso lar/ enquanto eu, louco sonhador/ busquei-te sem cessar...”), Adda, de Mário Ramos e Salvador Morais (“Adda, meu doce amor/ Adda meu terno afeto/ tu tens a fragrância e esplendor...”).
O manancial Calheiros foi inesgotável enquanto viveram o homem e sua voz. Tanto que, em 1955, regravou na Odeon os seus grandes êxitos artísticos. Havendo nascido em Maceió, a 5 de agosto de 1891, morreu, cercado pelos amigos, em 11 de janeiro de 1956. Depois de sua morte, foram editados dois long-playings de suas gravações: o primeiro de dez polegadas, da Odeon, intitulado A Patativa do Norte – oito faixas de sua gravações recentes dos velhos sucessos; o segundo, em doze polegadas, também da Odeon, intitulado Cabloco de Raça, contendo doze faixas a englobar gravações novas e velhas matrizes. Este último LP, por motivos óbvios, é bem mais valioso. Até hoje, no entando, ainda não existe um levantamento discográfico de Augusto Calheiros.

***

Como homenagem a Calheiros, vamos apresentar a letra completa de um dos seus maiores sucessos, Beleza do Sertão:

Tem muita gente cantando
Belezas do meu sertão
Mas por certo tem faltado
O amor à alma e à expressão
Sendo tão belo e tão lindo
O sertão da minha terra
Só quem n’alma está sentindo
Canta bem o que ele encerra

Não é só a madrugada
Ao romper a luz do dia
Mas também a passarada
Cantando a sua alegria
E os versos do sertanejo,
Simples, meigo e jovial.
Tendo a doçura de um beijo
Puto, danto virginal.

Só assim é que alguém canta
As belezas do sertão
Só canta belezas tantas
Quem tem alma e coração.
Pois ao cantar com verdade
As belezas do sertão
Filhos que choras a saudade
Nas cordas do violão.

Correio da Manhã
31/03/1965

 
Vogeler: resposta do tempo
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