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Carlos Galhardo: O Homem da Valsa

É fácil entrar na moda ou no mood do momento atual e esnobar ou decretar o esquecimento de Carlos Galhardo. Seria, ainda, para tanto, muito fácil basear-se nestes seus ultimo’s anos, nas suas últimas gravações: o appeal romântico já não invoca a autenticidade de outrora, a voz do cantor mais grave e menos lapiada. Mas a verdade é que Galhardo foi uma das vozes mais bonitas do nosso cancioneiro popular. Desde o seu aparecimento, até, mais ou menos, alguns anos depois do fim da II Guerra, marcou melodicamente uma das variantes de um tipo então vigente da sensibilidade popular, descompromissada intelectualmente. Foi especialista num setor, quando o ocupou ninguém mais, enquanto manteve-se em forma, roubou-lhe a ascendência: a valsa, não propriamente a valsa brasileira, com seus matizes característicos, mas a valsa romântica tradicional, a valsa de salão. Em suma, serviu àqueles compositores que reviveramm diluíram e adaptaram a valsa vienense entre nós: José Maria de Abreu, Gastão Lamounier, Georges Moran, Mário Lago e, principalmente, a dupla Paulo Barbosa & Oswaldo Santiado. E Carlos Galhardo possuia mesmo um imenso número de ouvintes. Não representa a espécie de música que traduz um elemento essencial na evolução estrutural dos complexos rítimicos daquilo que se infere como a música popular genuinamente brasileira. Nesse ponto, seria um interprete de fotos internacionalizantes. Talvez não haja sido por mera coincidência que a sua gravação da versão nacional da famosa valsa de Marchetti, “Fascinação”, tenha dido, durante alguns anos seguidos, o prefixo de um programa dominical de grande êxito, apresentando canções internacionais, na Rádio Tamôio, sob o patrocínio de Januário Ferrari. O programa era muito ouvido e, permanentemente, entre cada disco anunciado pelo locutor, ouvia-se Galhardo, na “Fascinação”: Os sonhos mais lindos sonhei/ de quimeras mil um castelo ergui/ e no teu olhar, tonto de emoção/ com sofreguidão mil ventura previ”… E também, não se fazer pouco da valsa em si. A valsa, de certo modo, como núcleo de uma dinâmica formativa, resiste mais ao tempo do que se pensa. Se formos lembrar o cinema – arte do tempo e também máquina do tempo – ver-se-a que a valsa e seu compasso inspiram a própria estrutura motovisual-sonora de grandes diretores, como Ophüls, Lubistch ou Duvivier e ajuda a sustentar contra a erosão do tempo obras-primas como “Maytime”, “Naughty Marietta”, “Lola Montés”, “The Great Waltz”.
E são inobjetáveis a riqueza melódica e, mesmo em determinados exeplos, a leira de algumas valsas interpretadas por Carlos Galhardo, entre meados do decênio dos trinta até cerca de dez anos depois. É indubitável: ainda se torna válido, hoje, ouvir aquela sua voz afilada, impecável, de belo timbre, revivida pera cera, a entoar “Cortina de Veludo”, o fabuloso “Baile de Sombras”, “Mais uma Valsa, Mais uma Saudade”, “Alguém”, “Linda Borboleta”, “Perfume de Mulher Bonita”, “Última Beijos”, “Salão Grenat”, “Velho Realejo” ou “Viena do Meu Coração”.
Carlos Galhardo começou gravando sambas, frevos e marchar, obtendo, inclusive, nesse período imediamamente inicial, alguns sucessos de carnaval, como é o caso da famosa marcha “Carolina”. Quando, no entando, entrou numa fase para a Columbia, vem a revelação, a vocação definitive: o ensejo foi a valsa de Paulo Barbosa e Oswaldo Santiado, “Cortina de Veludo”. Dominou a cidade com sua voz assim cantando: “No apartamento azul/ do nosso coração/ há rosas de Istambul/ e jarros do Japão/ é um sonho oriental/ de mágico esplendor/ aurora boreal/ na aurora de um amor/ E uma cortina de veludo esconde a porta oval/ por onde um dia hás de entrar/ e nessa cortina há de se fechar/ sobre o teu vulto quando ele há de ter transposto/ e não mais se abrirá, meu amor”. Estavamos em 1936. No ano seguinte, retorna à Victor e temos outro grande sucesso: “Italiana”, composto pelo trio Oswaldo Santiago, Paulo Barbosa e José Maria de Abreu: “Tu és italiana uma canção de amor/ teu beijo é para mim dos Alpes uma flor/ abriu-se em minh’alma um vulcão/ Vesúvio da minha paixão”…
Logo a seguir, é uma temporada na Odeon, onde registrou grandes números. De saída, uma notável gravação: na face A, um excelente samba da grande dupla Bide-Marçal, autora do clássico “Agora é Cinza” – “Dou-te um Adeus”: Dou-te um adeus para nunca mais/ se é que vai findar-se todo o meu tormento…”; na face B, sempre acompanhado pelo regional Benedicto Lacerta, a valsa-seresta “Apenas Tu”, de Roberto Martins e do ótimo letrista Jorge Faraj – uma das maiores criações de Galhardo: “Pelos jardins fatais do amore m ânsias loucas/ desabrocharam para mim formosas bocas/ bocas divinas que eu beijei/ mas as mulheres que eu amei/ para a grandeza do meu sonho foram poucas/ No meu viver não foram mais do que o presente/ apenas tu ficaste indefinidamente/ raio de sol a iluminar/ numa saudade singular/ as minhas noite tristes sem luar”. Após, veio outro grande sucesso, do filme “João Ninguém; um disco trazendo a valsa “Sonhos Azuis”, da dupla Alberto Ribeiro & João de Barro, e a ótima marchinha, “Cartinha Cor de Rosa”, só de João de Barro: “A cartinha que eu ontem achei/ na janela do meu bangalô/ era tua eu logo adivinhei/ porque meu coração palpitou/ pequenina de róseo matiz/ perfumada tal qual uma flor…”. A seguir, grava a valsa de Ataulpho Alves e Aldo Cabral, “A Você”, e o samba de Ataulpho e André Filho, “Quanta Tristeza”, acompanhado pelo regional de Pixinguinha e Luperce, e duas belas valsas da dupla Gastão Lamounier e Mário Rossi: “E o Destino Desfolho” e “Assim Acaba um Grande Amor”: “O nosso amor era tão lindo/ suave ilusão sentimental/ nasceu, viveu, morreu sorrindo/ foi um romance emocional/ hoje depois do rompimento/ é que avalio a minha dor/ eu sem você que sofrimento!/ e assim acaba um grande amor”. Logo depois, um disco de rara classe, contendo duas composições do duo Benedicto Lacerda e Jorge Faraj: o samba “E a Saudade Ficou” (“Na solidão da casa que um dia/ aluguei a sorrir para nós dois/ ouço-te a voz tão cheia de harmonia/ sinto o perfume do teu pó de arroz”, contendo, noutro trecho, do versejar amargo, um dos touchstones de Jorge Faraj: “Se eu sou feliz/ revendo em meu desgosto/ o rosto da mulher que não me quis”) e a valsa “É Quase a Felicidade” (“Para matar a saudade/ da grande felicidade/ que eu perdi ao de perder/ divaguei por mil caminhos/ bebi de todos os vinhos/ mas não pude te esquecer”, com um outro trecho que lembra “A Mulher que Ficou na Taça”, de Orestes Barbosa: “no cabaré da desgraça/ esgotei minha taça/ mas foi em vão afinal”). Chega então o momento da caracterização definitivamente vienense de Carlos Galhardo: duas composições da dupla Paulo Barbosa-Oswaldo Santiago: “Viena do Meu Coração” (“Calmos bosques de Viena/ numa tarde doce, amena/ ondas do Danúbio a suspirar sob o luar/ nós no barco azul da ilusão a navegar”), e “Baile de Sombras”, umas de suas maiores criações, com aquela abertura insólita: “Guardo nos olhos o claro clarão do teu riso/ como quem guarda uma jóia no fundo de um cofre”, precedendo a extrema riquesa melódica de “Baile de sombras pelo ar/ vejo o passado espiralar/ numa vertigem cuja origem/ pode a saudade recompor meu amor/ Baile de sombras e ilusão/ ah, quem me dera novamente/ tornar presente o amor ausente/ vejo o passado espiralar/ o teu olhar no meu olhar”. Enfim, ainda na Odeon, do filme “O Bobo do Rei”, lançou da dupla Alberto Ribeiro-João de Barro, a valsa “Amar Até Morrer” e o samba “Eu Sei de Alguém”.
Voltando, então, em definitivo, para a Victor, para aquela sua fase l’âge d’or, Carlos Galhardo já podia ser chamado o home da valsa. Surge logo uma das duas melhores valsas, “Mais uma Valsa, Mais uma Saudade”, composições de José Maria de Abreu, com letra de Lamartine Babo: “Mais uma valsa, mais uma saudade/ de alguém que não me quis/ vivo cantando a sós pela cidade/ fingindo ser feliz/ e, das lembranças, uma coleção, nem sei/ quantas palavras no meu coração gravei/ mas uma valsa, mais saudade/ saudade que nos vem de alguém”. E agora, vamos registrando, en passant, outros dos seus êxitos desta fase: “Noites Sem Luar”, de José Maria de Abreu e Francisco Mattoso: “Noite sem lua, sem luz, sem calor/ qual a minha vida sem amor”; “Alguém”, de José Maria de Abreu e Oswaldo Santiago: “Alguém/ que ficou lá no passado longe além/ Alguém/ que de mim talvez nem se lembre muito bem/ hoje me fez reviver um grande amor/ hoje me fez renascent num sonho em gflor”; “Linda Borboleta”, de Alberto Ribeiro e João de Barro, até hoje evocado o seu refrão: “voa, minha Linda borboleta/ voa, despertando ilusão/ voa que a vida é tão boa/ quando se tem um amor no coração”; “Perfume de mulher bonita”, de Georges Moran e Oswaldo Santiago: “Perfume de mulher bonita/ tu me vens recordar um amor/ em ti meu coração palpita/ num sonho/ roisonho/ perfume de mulher bonita/ já gozei certa vez seu frescor/ e um dia se ela voltar/ de novo há de vibrar/ nas minha noiter de luar”; “Salão Grená”, de Paulo Barroso e Francisco Célio: “Num salão grená/ baila pelo ar/ nota esmaecida/ resto da canção, do perfume teu/ que foi minha vida”; “Último Beijo”, de Jorge Faraj e Roberto Martins, outra das maiores criações de Galhardo: “Leio e releio a chorar/ adeus, adeus, e sem pensar/ leio e torno a beijar/ a flor do seu ultimo beijos/ sei que ela nunca me quis/ a verdade esta na carta e me diz/ mas beijando na carta o seu beijo / eu sou menos infeliz”; “Maringá”, a famosa criação de Joubert Carvalho; dois excelentes sambas, como “Favela”, de Roberto Martins e Waldemar Silva, e “Quem foi?”, de J. Cascata e Leonel Azevedo; “Arco-Íris”, da dupla de “Deusa do Cassino”, Torres Homes e Newton Teixeira: “Até o verde que das cores é a mais bela/ faz lembrar-me os olhos dela/ da mulher que não me quis”; “Roleta da Vida”, de Oswaldo Santiago e Ileriberto Muraro: “Tu fostes em minha vida/ o pano verda da ilusão/ em ti como uma ficha/ eu qrrisque meu coração; “Devolve”, a primeira composição de Mário Lago a ser gravada: “Mandaste as velhas cartas comovidas/ que na febre do amor lhe enviei/ mandaste o que ficou de duas vidas/ um romace e uma dor e eu provei/ mandaste tudo porém/ falta o melho que eu te dei/ Devolve toda a tranquilidade/ toda a felicidade/ qu eu te dei e que perdi/ devolve, que eu te devolvo ainda, esta saudade finda/ que eu tenho de ti”; “Beijo de Valsa, de Roberto Martins e Mário Rossi: “Vai nesta valsa o meu beijo/ o meu brinde sonoro de amor/ revelação de um desejo…”; “Velho Realijo”, de Custódio de Mesquita e Sady Cabral, também gravado po Sylvio Caldas: “Depois, tu partiste/ ficou triste a rua deserta/ na tarde fria e calma/ ouço ainda o realejo a cantar/ ficou a saudade/ como a morar/ tu cantas alegre realijo, parece que chorar com pena de mim”; “Se a lua Contasse”; de Custódio Mesquita; esta uma marcha: “Se a lua contasse/ tudo o que vê/ de mim e de você/ muito teria o que contra/ contaria que nos viu brigando/ e viu você chorando, me pedindo para voltar”.
E o acervo de Carlos Galhardo ainda vai mais longe, mais adiante, atravessando períodos em que outros subiam e logo declinavam. Hoje, poderiam alguns alegar – fora de moda; mas ficou um patrimônio, o reflexo de toda uma época.
Castello Carlos Guagliardi nasceu em 24 de abril de 1913, em São Paulo, na Rua Vinte e Quatro de Maio, nº13. Com um ano de idade, veio para o Rio, Estácio. Estudou e logo passou a trabalhar, como alfaiate e num balcão de charutaria. Numa de suas primeiras audições, estava um grupo no qual figurava Chico Alves. Essa reunião foi na casa de um dos irmãos de Galhardo, cantando este a famosa “Deusa”, de Freire Júnior. Afinal, estreou gravando na Victor um samba de Assis Valente, “Para Onde Irá o Brasik?”. Assim, prosseguiu a sua carreira em ascensão, gravando naquela empresa, logo depois, com uma temporada na Colúmbia, e, ao mesmo tempo, cantando em várias estações de radio. Passou um período gravando na Odeon, voltando à Victor já consagrado, principalmente em sua especialidade – a valsa de salão. Aliás, uma curiosidade: a voz de Galhardo em seu apogeu em muito se assemelhava à voz de Francisco Alves, também no apogeu. Existem mesmo certas gravações, diante das quais, os mais desavisados confundem um interprete com outro. Caso idêntico acontecia entre o Nelson Gonçalves da primeira fase (“Quem Mente Perde a Razão”, por exemplo) e Orlando Silva.
Continuou o criador de “Linda Butterfly” a acumular sucessos, brilhando inclusive no carnaval. Músicas como “Carolina” e Alá-la-ô”, são cantadas até hoje, quando Momo retorna. Em 1943, tem um dos seus maiores sucessos: a versão da valsa “Fascinação”, de Marchetti. Em 1947, já com a voz tornando-se mais grave, lança um disco dois grandes triunfos: a valsa de Paraguaçu, “A Pequenina Cruz de Teu Rosário” e o samba de Roberto Martins e Ary Monteiro, “Pecado Original”, este um dos seus melhores: “Anda, teu destino te chama/ não pode deixar na lama/ onde nasce a flor do mal/ segue teu destino rude/ não tens direito à virtude/ do pecado original”. Em 1952, estava viajando para Portugal, quando tem a notícia da morte de Chico Alves. E, lá for a, cantou com grande êxito, inclusive composições que Chico lhe entregara na hora da partida.
Carlos Galhardo prossegue até hoje em plena atividade. Já possui mais de uma dezena de long-playings gravados, alguns deles de indiscutível valor, pois contêm as matrizes originais da sua fase de ouro. Infelizmente, até hoje, não existe um levantamento discográfico de sua gravações.

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