jlg
música

  rj  
Samba: glória do malandro

O malandro é o principal personagem dos grandes sambas já encorpados na tradição do nosso cancioneiro popular – aqueles que se enfeixam na linha denominada velha guarda. A explicação para isso pode invocar diversos fatores vinculados ao que se poderia denominar sociologia da criação. Enquanto a nossa música popular, em sua fase-vertente mais espontânea, jorrava direto do morro ou do bas-fond urbano (formado este, em especial, por aquelas camadas que Marx chamou de lumpen-proletariado) para as orquestras ou gravadoras, a figura do malandro era uma dominante. Haviam duas opções para o homem das classes pobres: absorver a dureza da vida e, assim enfrentar o trabalho, que, na gíria era chamado de batedor; ou tentar a sorte vivencial, a facilidade do jogo da malandragem, isto é, aceitar a marginalidade social, fosse a passiva (a mera vadiagem) ou a ativa, todas essas “profissões” que interessam imediatamente à polícia. Enfim, há o meio-termo, a fusão das opções.
Se tomarmos em conta que qualquer ato criativo, por mais pessimista que seja, não deixa de refletir uma area de afirmação, nada estranho pois que se glorificasse a malandragem. Em toda música popular autêntica, isto é, nas composições não cultas, feitas pelo povo, a figura do marginal sempre se impõe. Era assim no tango, no qual, alias, já havia o termo malandrin empregado amiúde, onde se glorificava os personagens do guapo e do gigolô, além é claro da recorrência da imagem da meretriz sempre em primeiro plano. Note-se, alias, que grande parte de nossa gíria tem correlação portenha: cana, bacana, engrupir, otário etc. O mesmo na fase inicial do jazz (New Orleans), menos sofisticada mais improvisada, ou do fado, no século passado, que era, antes de passar aos salões, só cantado nos bairros pobres, nas tavernas.
É bastante sintomático observar que o livro de versos de Eduardo das Neves – o palhaço negro, cantor e letrista, pai de um dos nossos maiores compositores de seresta, Cândido das Neves “Índio” – intitulava-se Trovador da Malandragem, editado em 1926, mas com boa parte das peças escritas no princípio do século. E, daí por diante, na medida em que se ampliava a apropriação dos instrumentos e a divulgação dos sambas, o mito do malandro foi-se tornando uma constante. A maioria dos nossos compositores, pelo menos de raspão em alguns casos, insistia em abordá-lo.
Noel Rosa, logo na sua primeira fase, atacou o assunto. É verdade que, até por sua condição social, as suas composições refletem mais a attitude do boêmio (pequena burguesia) do que a do malandro. Talvez, no entando, o seu contato com a dupla Ismael Silva – Nílton Bastos, tenha-lhe influenciado, tematicamente, um dos seus maiores sambas, Mulato Bamba, que, se não contém a palavra malandro, não deixa de ser uma exaltação ao marginal: “Este mulato forte/ é do Salgueiro/ passear no tintureiro/ era o seu esporte/ já nasceu com sorte/ e desde pirralho/ vive à custa do baralho/ nunca viu trabalho…” E também, em outro clássico, Quando o Samba Acabou, narra o duelo de improvisação de samba entre dois malandros, em busca do coração de Rosinha, a “cabrocha de alta linha”. Ambos os sambas de Noel foram magistralmente gravados e interpretados por Mário Reis.
Ismael Silva deu, em parceria com Nílton Bastos, um dos clássicos da jactância do malandro, O Que Será de Mim?, lançado pela dupla Chico Alves – Mário Reis: “Se eu precisar algum dia/ de ir pro batente/ não sei o que será/ pois vivo na malandragem/ e vida melhor não há”, com aquele final tachativo: “o trabalho não é bom/ ô, trabalhar só obrigado/ por gusto ninguém vai lá”. Em outra composição, Ismael exalta o Amor de Malandro: “o amor é o malandro, ó meu bem/ melhor do que ele ninguém/ se ele te bate é porque gosta de ti/ porque bater em quem não se gosta eu nunca vi”. No mesmo enfoque, agora saudosista, é um dos melhores sambas da dupla Alcebíades Barcellos – Armando Marçal (os mesmoms que criaram o notável Agora é Cinza), Deixo Saudade, gravado pela dupla Idelfonso Norat & Murilo Caldas, onde se lamenta o abandono da malandragem.
Por outro lado, se a mulher do malandro era geralmente a cabrocha, na terminologia mais usada, Freire Júnior (o criador de Luar de Paquetá), que já havia feito um samba denominado Malandro, compos uma de suas serestas sob o título de Malandrinha, onde o cantor terminava dizendo à sua amada: “és malandrinha, não precisas trabalhar”. Malandro, ao mesmo tempo, é nome de um samba de André Filho (o autor de Cidade Maravilhosa), lançado por Cármen Miranda, no começo de sua carreira, onde a mulher faz sua declaração de amor, “Malandro, oi malandro, tu sabes que eu te quero bem…”
O mesmo Alcebíades Barcellos (Bide) fez outra composição denominada Malandragem, assim como o há pouco falecido Heitor dos Prazeres (também pintor primitivo) compos a sua Mulher de Malandro. Porém ainda mais interessante é o espetacular samba de Lauro dos Santos, gravado também pela dupla Francisco Alves – Mário Reis – Nem Assim -, onde narra o lamento do marginal que, debalde, tentara se regenerar: “Ah, minha vida/ ó Deus, tena pena de mim/ deixei a maldita malandragem / par aver se endireitava/ mas nem assim”. E malandro agrassivo, ufanista, era o de Wilson Batista, que ensejou a famosa polêmica com Noel Rosa: lenço no pescoço, tamanco arrastando, navalha no bolso (para que Noel, defendendo a vila, a ordem e a paz, aplicasse o famoso: “tira essa navalha que te atrapalha”.
Também sem citar a palavra, outra descrição notavelmente versificada da figura do malandro do morro é a de J. Cascata (o criador de Lábios Que Beijei, parceria com Leonel Azevedo) no samba, Meu Romance, lançado por Orlando Silva em seu apogeu, quando o cantor, por amor de uma cabrocha-pastora da Mangueira, se torna malandro-sambista: “E hoje faço parte da turma/ no braço eu trago sempre o paletó/ um lenço amarrado no pescoço/ eu já me sinto um outro moço/ com o meu chinelo charló/ e até faço valentia/ e tiro samba de harmonia”.
Pode-se dar algumas razões pelo desaparecimento paulatino do mito do malandro no samba. Numa primeira etapa, a simplificação das letras, o domínio dos disc-jockeys nas parcerias consumadas na cidade, em escritórios, em lugar do morro ou do botequim. Depois, a sofisticação, a época da bossa nova, de samba feito pela classe media, em apartamentos da Zona Sul. A seguir, a Jovem Guarda. Quando o samba já não é gratuito em seu fazer, já implica em cachet ou lucros e pagamentos garantidos, a própria relação de contrato ou de emprego substitui o status marginal. Os malandros existem, deem estar compondo, mas estão duplamente marginalizados: na vida e na música. O que é um desperdício, pois a sua ótica sonorizada contribui para reforçar o colorido do processo – é necessária porque é genuine arte popular, também um dos primas pelos quais o povo encara as coisas, sem precisar, de antemão, de qualquer rótulo literário de “participação”.



Correio da Manhã
28/07/1967

 
Vogeler: resposta do tempo
Correio da Manhã 19/11/1964

Orestes: Poesia e Seresta
Correio da Manhã 16/12/1964

Benedito Lacerda: ou A Flauta de Prata
Correio da Manhã 30/12/1964

Cândido das Neves “Índio”: seresteiro da cidade
Correio da Manhã 06/01/1965

Joubert de Carvalho: o criador de "Maringá"
Correio da Manhã 10/02/1965

Carlos Galhardo: O Homem da Valsa
Correio da Manhã 10/03/1965

Freire Júnior: tempo de serenatas
Correio da Manhã 17/03/1965

Augusto Calheiros: A patativa do Norte
Correio da Manhã 31/03/1965

Cascata: Jorrar de Bossa
Correio da Manhã 07/04/1965

Patrício Teixeira: da modinha ao carnaval
Correio da Manhã 21/04/1965

Eduardo Souto: Manancial de Música
Correio da Manhã 20/05/1965

Heitor: prazer do samba
Correio da Manhã 05/10/1966

Estética do Fado
Correio da Manhã 14/05/1967

Samba: glória do malandro
Correio da Manhã 28/07/1967

Foi um Rio
Correio da Manhã 10/03/1970

20 registros
 
|< <<   1  2    >> >|