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O último livro de Cabral: “Quaderna”

Quaderna – o quadrado – a quadra – é essa a tomada geral de um esquema arquitetônico para o verso de João Cabral de Melo Neto, já anteriormente adotado em um de seus poemas mais importantes, Antiode, e agora prefixado numa quase normatividade: Uma Faca Só Lâmina, a série Paisagens com Figuras e êste último livro – Quaderna – editado em Lisboa, na coleção Poesia e Verdade, no qual apenas o último poema, Jogos Frutais, foge à rigorosa regra da quadra. “Quando a flauta soou,/ um tempo se desdobrou/ do tempo, como uma caixa/ de dentro de outra caixa”: já em A Fábula de Anfion o sôpro do protagonista (ou poeta), impelido pela intervenção do acaso, construindo, no deserto, Tebas (ou o poema), emoldura o desdobrar do quadrado. O quadrado, já um conteúdo, uma infratemática geral da obra cabralina, contendo, ao mesmo tempo, em sua ambivalência de signos, os quatro elementos básicos do cosmos: ar, água, terra e fogo também constantes, mais diretamente nas implicações regionais do arcabouço paisagístico do poeta. A própria técnica de repetição de palavras, tão particular a JCMN e que, na poesia concreta, encontra a sua evidência sintética na presentificação ideográfica e não discursiva, não deixa de demonstrar um paralelismo isomórfico a êsse permanente desdobrar de quadras-quadrados (exterior-interior): uma dialética de planos e linhas, de significados e sentidos concretos – diretos – retos. E, aqui uma moderna: a passagem de um estágio de fundamentação pictórica (a mera perquirição imagética – “a fanopéia”, segundo Pound) para um outro de fundamentação arquitetônica.
Num levantamento dos elementos formativos mais presentes na elaboração de uma linguagem ponto-teto na atual poesia brasileira, podem-se discernir os seguintes: a) a mencionada ténica de repetição de palavras, obedecendo, amiúde a um desdobrar crescente, de acôrdo com o desenvolver análogo, a partir de um detalhe, da intensificação ou ampliação do fundo semântico: (Como gôta a gota/ até o açúcar,/ gôta a gôta/ até as coroas de terra,/ como gôta a gôta/ até uma nova planta, gôta a gôta/ até as ilhas súbitas/ aflorando alegres). Noutros casos, uma linearidade par a par, de quatro palavras, duas a duas – concentuação matriz de uma peça: que se dá de dia em dia,/ que se dá de homem a homem,/ que se dá de sêca em sêca,/ que se dá de morte em morte. O primeiro trecho é extraído do
Cão Sem Plumas e êste segundo do Vale do Capibariba.
Sob diferente aspecto, a repetição cumpre também um escopo de concreção, de conferir a autonomia da palavra-forma e não invocação abstrata. O exemplo a seguir, de uma passagem da
Antíode, se constitui do mais significativo para o fato: flor! (Te escrevo:/ flor! Não uma/ flor, nem aquela/ flor-virtude – em/ disfarçados urinóis). Flor é a palavra/ flor, verso inscrito/ no verso, como manhãs no tempo./ Flor o salto da ave para o vôo. E a escolha da palavra-motivo (flor), é sintomática – a mais “liriferante”, desde uma longínqua tradição de bardos e menestréis.
b) – Autilização de substantivos concretos a fim de criar uma idéia abstrata: nomeação de coisas ou objetos. Isso já também remonta a uma longa tradição, intensificada pelos poetas metafísicos inglêses, e que vem escoar em vários nomes importantes da poesia moderna, especialmente Lorca (Nadie compreendia el perfume/ de la oscura magnolia de tu vientre./ Nadie sabia que martirizabas/ un colibri de amor entre los dientes.), de quem o autor de
O Rio, do mesmo modo, muito se aproxima no que se reporta à repetição.
Muito rara ou inexistente a conceituação abstrata ou o adjetivo sem função substantivante: o mar e sua carne/ vidrada, de estátua (em
O Cão Sem Plumas; aquela grande sêde de palha tem O Rio).
c) – Uma cadência rítmica regular, despojada dos grandes efeitos sonoros, ou então, conforme as solicitacões de fundo, um anticompasso, uma arritmia oral, em função de aspereza, secura, dureza, contribuindo para tanto o uso reiterado da aliteração em paralelo ao emprego constante do “enjambement”, ou mesmo da tmese, fortalecendo as pausas (a presença do silêncio, denotada no fundo), no verso curto.
A Fábula de Anjion e a Antiode se consistem em exemplos precisos dêsse último caso (No deserto, entre a paisagem de seu/ vocabulário, Anjion/ ao ar mineral isento), enquanto a cadência regular, fluente, forjando uma espécie de monótono repisar de um tema-objeto (relógio, bala, faca), em Uma Faca Só Lâmina, ilustra o primeiro aspecto: Assim como uma bala/ enterrada no corpo,/ fazendo mais espêss/ um dos lados do do morto.
No plano das referências em nível semântico, encontra-se, numa das “águas”, a mesma obsessão de uma linhagem mallarmaica: o poeta e a obra decisiva recaindo numa série de palavras-chave que acionam o formular da conjuntura prefixada pelo autor de
Un Coup de Dés; o acaso, o vazio, a fôlha em branco, o silêncio – A Fábula de Anjion, A Psicologia da Composição, Antiode, Alguns Toureiros, A Palo Sêco, surgindo ainda três constantes de maior reverberação cabralina: o rigor, a exatidão e a secura.
Na outra “águas”, está a participação, uma visão coletiva – os elementos paisagísticos, a terra – Pernambuco; e também um pouco da Espanha, a cuja formação de um artesanato poético muito deve João Cabral. Aqui, se o discurso as vêzes, se “derrama” um pouco mais além da medida habitual da contenção (
O Rio e a Morte e Vida Severina), não deixam, entretanto, de imperar os mesmos elementos básicos, numa visão do de fora, e não do de dentro, embora, em certas ocasiões, ambas se mesclem numa dialética de reflexos. Nesta faixa 9ª água), além dos dois longos poemas citados, inserem-se O Cão Sem Plumas (um dos momentos altos da linguagem cabralina), a extensa seqüência de cemitérios, algumas peças sôbre a Espanha e boa parte do conteúdo do recente Quaderna.
Em
Quaderna, retorna JCMN mantendo a arquitetura típica de sua expressão verbal, num livro de raro equilíbrio, dentro de sua coerência formativa, que dêle faz um dos poucos a manter legível o verso fabricado hoje em dia. E com dois ou três poemas passíveis de serem situados no plano mais elevado de sua obra.
Coordenadas idênticas para uma técnica do conhecimento & descoberta da realidade a partir da palavra em pêso. A permanente luta, através do despojamento, para atingir a clareza e a exatidão. Comparar o e um cante que exige/ o ser-se ao meio-dia,/ que é quando a sombra foge/ e não medra a magia, de agora, em
A Palo Sêco, com o antigo tiro nas lebres de vidro/ do invisível, de Psicologia da Composição. Por outro lado, o mesmo princípio de repetição, no sentido de conferir a medida exata da palavra, precisando o rendimento das células semânticas.
Vamos, aqui, fazer um levantamento dos principais poemas de
Quaderna, com seus respectivos esquemas de referências.
Estudos para uma bailadora andaluza - diversas comparações sugeridas pela bailadora em sua dança: 1º) o fogo (de arrancar-se de si mesmo/ numa primeira faísca); 2º) a cavaleira e a égua que se fundem num nervo; 3º) a telegrafia, nos movimentos do corpo, principalmente cabeça ou perna, com um arremate exemplar da dicção cabralina:

Já não cabe duvidar
deve ser telegrafia:
basta escutar a dicção
tão morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em prêto e branco
de sua perna polida.

4º) Libro (coberta e contra-coberta) e estátua, figurações do início e fim da dança; 5º) a fixação na terra: a bailarina não como ave, mas árvore. Êsse um dos pontos nevrálgicos da temática de JCMN: a consubstanciação de uma vivência sólida, do que está fincado na terra, adstrito ao real, e não apoiado no ar. 6º) a roupagem dela como as fôlhas de uma espiga, que no final da dança resta, na memória, apenas ela própria – espiga. A cada uma das seis partes do poema corresponde um nexo comparativo Seis partes, cada qual oito quadras – simetria, ritmo mais compassado, coadunado com a idéia da dança – uma dança, por assim dizer, geometrizada num vibratum colorido das correlações metafóricas selecionadas. Um dos bons poemas do volume, malgrado um certo afrouxamento em densidade de algumas quadras.
De um Avião – um dos poemas onde a arquitetura do quadrado crescente esta mais nítida, em analogia com o desdobrar das conotações visuais. Movimento do avião em subida; e cada vez que a distância vai aumentando, vai-se esquematizando simètricamente a paisagem, restando sòmente linhas, depois luz e, finalmente, a cidade como a ponta de um diamante. E, quando a lembrança entra em cena e procura refazer a idéia-imagem da cidade, incorpora-se num processo inverso (da casca para o fundo), chegando até aquilo que por primeiro/ se apagar está mais oculto:/ o homem, que é o núcleo/ do núcleo de seu núcleo.
A Palavra Sêda – em Quaderna, Cabral inaugura uma espécie de ciclo feminino em sua obra: poemas sôbre a mulher; e como sempre, partindo de um objeto como ponto de referência: mulher-casa, mulher-gaiola, mulher-onda etc. A Palavra Sêda insere-se nesse ciclo, mas, antes de tudo, já constitui um poema sôbre o poema, um poêma sôbre a palavra. A palavra já gasta X a coisa sêda – fazer com que o objeto renasça de uma poça amorfa de exacerbações líricas, numa afirmação de consistência.

há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta
existe na coisa sêda.

Justamente o último trecho, quando a descoberta da coisa, concorda com um indice máximo de rarefação concretizante que vai a linguagem alcançando – exemplar, como domínio do poeta sôbre sua técnica de enumeração aglutinante.
A Palo Sêco – êste, o maior poema do livro e um dos mais significativos em tôda a obra. Aqui, retorna-se uma linha fundada na trilogia Fábula de Anjion – Psicologia da Composição – Antiode. A secura germinando o vigor, a exatidão: contra o engôdo do mistério: o cante sem efeite:

O cante a palo sêco
e um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;

Ser lúcido, ser-se ao meio-dia, um vazio consciente, onde o silêncio prescreve o campo de ação do poeta. O sentimento da palavra-coisa, mediante uma vivência que vem do solo – a voz que tem de perfurar as camadas do silêncio e sabe só a secura:

não o de aceitar o sêco
por resignadamente,
mas de empregar o sêco
porque é mais contundente.

A estruturação obedece a um critério de repetições de palavras, ajustado a um jôgo de assonâncias, algumas vêzes incidindo em rimas perfeitas, noutras em rima pela vogal (2º e 4º verso das quadras). É também a peça mais densa e concentrada dêste novo livro, aquela em que êle mais seguro se revela de seu vocabulário.
Rio e / ou Poço – um problema de linhas é o processo básico da agenciação metafórica. Imagens de um permanente conflito horizontal x vertical, reversíveis, em seu significado, a uma dialética de fundo corpo/alma. A mulher e a água. A mulher de pé = água de rio, móvel, externa – horizontal. Deitada = água de poço, imóvel, profunda – vertical. As quadras finais dêsse Rio e/ou Poço são também um dos instantes mais altos:

Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
vivendo sua profundeza,

água em si mesma, parada,
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.

Poema(s) da Cabra – É um dêsses poemas onde mais se acentua a procura de expressar uma dureza do vital, a partir da própria palavra em situação – cabra – numa condensação de um fluxo de agudas e sólidas conotações, a transformar uma idéia-imagem de animal em mineral: a pedra, o negro (carvão), o osso (aço).

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é da cabra, êsse animal
sem fôlhas, só raiz e talo,

que a da cabra, êsse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.

Num apanhado de conjunto, é um dos maiores poemas de JCMN em sua última fase.
Jogos Frutais – Trata-se da única peça que foge ao esquema das quadras estrofes de sete versos, na base de três a sete sílabas e quatro a quatro sílabas. Poema longo, porém de bastante unidade. Também um elevado índice de despojamento e objetividade: vinte e oito cadências, comparando a carne feminina com frutas. Tons, contornos, texturas, desenvolvem um contido espraiar de formas e côres, sem que jamais seja nomeado diretamente o sujeito do poema. O despojamento funcional faz com que a típica dicção cabralina atinja um dos seus ápices.
Sevilha (a cidade na medida do próprio corpo), Imitação da Água, Mulher Vestida de Gaiola, O Motorneiro de Caxangá (com a sua curiosa dialética verso-reverso – ida e volta – afirmação-negação) ou Paisagens Com Cupim, com a sua admirável justaposição, via imagem, de Recife contra o mar (Cai como um prato de metal/ sôbre outro prato de metal) ainda se consistem em construções de inegável interêsse, com soluções artesanais peculiares, fortalecendo a posição de João Cabral de Melo Neto naquele terreno de pura invenção de uma linguagem poética elaborada entre nós, cuja primeira eclosão deu-se com Souzândrade e, passando por Drummond e Oswald de Andrade, veio nêle desaguar com tôda a pujança.

Tribuna da Imprensa
06/08/1960

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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