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Um poeta esquecido

Neste ano em que se comemora o quadragésimo aniversário do movimento modernista, vale a pena procurar a reatualização da obra, pequena, mas importante, de um poeta que, na época, melhor aquilatou, em têrmos formativos, o espírito de 22: Luís Aranha.

Sua produção publicada foi bastante escassa; tanto que chegou a ser considerado um bissexto – e é nessa condição que figura na
Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, organizada por Manuel Bandeira. Contudo, se a essa obra parca falta amplitude, sob uma perspectiva quantitativa, sobra-lhe intensidade, sob um prisma qualitativo. Pelo menos, pode-se afirmar que seus três poemas bastante longos – Poema Giratório, Poema Pitágoras, Drogaria do Éter e da Sombra, juntamente com o admirável Poema Pneumático – incluem-se com facilidade entre os melhores que o nosso modernismo, de imediato, proporcionou. E, não só pela extensão, mas também devido à sua concepção estrutural, deparamo-nos com o único épico que, a rigor, 22 veio a forjar.
Existe, é verdade, um estudo de Mário de Andrade – Luís Aranha ou a Poesia Prepaparatoriana - publicado dez anos depois da semana de arte moderna. Um trabalho aplicado e meticuloso, um visível esfôrço para compreender e situar o poeta, embora nem sempre essa compreensão corroa determinadas passagens do ensaio. Apesar disso e talvez porque L.A. tenha deixado de participar da vida literária, depois foi o esquecimento de sua curta contribuição, não tomando em conta breves comentários ou referências en passant, aqui ou acolá.
Uma épica da civilização industrial denotam os seus principais poemas, às vêzes contendo trechos que constituem verdadeiras montagens, análogas às do cinema, de retalhos impressionistas, envolvendo fatos e objetos. Nisso, dentro do contexto de uma perspectiva industrial que induz a sua área semântica, êle está bem mais próximo de Pound e Maiakóvski, do que o Whitman divisado por Mário de Andrade, embora com êste último esteja patente aquela afinidade de uma vastidão do colquial própria a ambos. Apesar de os dados informativos e, sob múltiplos aspectos, evidentemente a própria obra, indicarem a sua intimidade com a linha francesa de Apollinaire, Blaise Cendrars, Cocteau ou Max Jacob, notamos traços evidentes de uma típica dicção poundiana:

No chão tufos de verdura encharcados de areia branca
Do rochedo um jato de água fresca
Serpentes fugindo na folhagem
E o calor morno rolando pelo chão esmagado pela luz pesada
Cada um de nós rei.
Trono das dunas brancas!
(Poema Giratório)

Êste phanos sadio, esta paisimagística bem afim à do poeta dos Cantares, já bem denotam uma assimilação do que seria um contexto formativo da poesia moderna. O movimento imagista, do qual Ezra Pound foi um dos pioneiros, e que, na época, chegou a nós, via Mário de Andrade, com as pinceladas menores de Amy Lowell (amygism, not imagism, segundo EP) encontra suas ressonâncias no trabalho de Luís Aranha:

Na colmeia dos pulmões o enxame do ar zumbe
Bandeira de pó agitada quando passo
Os patos voam
(Poema Pneumático)

Notar a passagem do 2º para o 3º verso, com o aspecto sintético do emprêgo do verbo passar, açambarcando as duas tomadas – a da bandeira e a dos patos.
Por outro lado, Mário de Andrade descobre dois haikais no contexto da Drogaria do Éter e da Sombras

Pardas gôtas de mel
Voando em tôrno duma rosa
Abelhas

Jogaste tua ventarola para o céu
Ela ficou prêsa no azul
Convertida em lua.

Contudo, os elementos constantes de sua poesia não estão apenas vinculados ao campo da imagem, nem mesmo, é esta a sua principal feição. Via de regra, a chave de estrutura se situa num ritmo galopante, visual em têrmos de cinema, com as tomadas e os cortes abruptos, muitas vêzes violentando a própria sintaxe. E a cosmovisão, cunhada fortemente em arroubos futuristas, de uma civilização que, de acôrdo com Caesirer, abandona a perspectiva mecânica pela eletrodinâmica. Um forte jargão coloquial, em diversos casos, adotando, mesmo, o timbre oratório, espraia-se intercalado com apontamentos subjetivos ou apanhados objetivos, semelhantes a manchetes e notícias de jornal. Um tal processo associativo, conduz amiúde a uma espécie de stream of consciousness, como no exemplo do Poema Pneumático, onde jamais se descreve a linha semântica de fundo: o protagonista está num automóvel que rebenta os pneus.
Poder-se-ia dizer que a poesia prosaica, típica do vers libre de 22, mescla-se com momentos admiráveis de touchstone, de puras relações morfológicas corroborando o sentido das palavras. Como no trecho do Poema Pitágoras:

A terra é uma grande esponja que se embebe das tristezas do universo
Meu coração é uma esponja que absorve tôda a tristeza da terra
Uma grande pálpebra azul treme no céu e pisca
Corisco arisco risca no céu

com o último verso dentro da grande tradição alternativa de um Gongora, um Mallarmé.
Exemplo de montagem bastante definido no início de Maio 12:

A pêndula do relógio marca passo eternamente
O “guichet” de madeira
Guilhotina
Decapitado como na figura de Chagall
A lua cheia de pó de arroz
Espáduas nuas
Prontas para o baile
Rua 15 de Novembro de 1889

ou então no poema Telegrama, cuja estrutura é a de uma linguagem telegráfica; assim o trecho final:

Vim telegrafar
Parto pelo último trem
Espere-me na estação
Luís Aranha

São-lhe também constantes os recursos de espacialização e variação tipográfica, bem como a já mencionada violação da sintaxe corrente – elementos preciosos na dialética formativa da atual vanguarda poética. Na Drogaria do Éter e a Sobra a seqüência vertical, os diversos nomes de drogas, já citada por Cassiano Ricardo, em seu 22 e a Poesia de Hoje; no final do Poema Giratório, temos um boletim médico, num quadrado impresso a títulos fortes. Êste poema, aliás, dividido em extensas partes, que se demarcam por meio da febre do protagonista que sobe no termômetro – 88 graus, 39, 40, 41 – contém muitos dos recursos e dos tipos de dicção aqui anotados:

Oh! aquiela aranha côr de opala
Que estendia as pernas para mim
Môscas de sonhos hipnotizados!
Ela me enleava num bordado claro?
Sugando-me a energia
E o capitão achava-me na proa
Envolto num casulo de luar…

La Prensa diz
A Argentina proibiu a exportação de trigo
Uma lente para o observatório de Buenos Aires
Estudo astronomia numa lente polida por Spinosa
Judeu
Uma sinagoga nos Andes
Não sei se a Cordilheira cai pique sôbre o mar
Santiago

Máquinas a mugir em movimento louco
Vozes trepidações campainhas
Baques gritos sereis alarido
Rouqueijos e tropel
Relógios a compassar nessa luta insofria
O ritmo frenético da vida!...

Americanamente
Maquinações alemãs contra o americano
A alfândega revistou-me a bagagem no porto
E não achou

O desprêzo propositado da pontuação adjetiva, certos substantivos e faz o desvio de sentido de uma frase: As trincheiras canais onde a água se estagnava…
Vaso de cobre cheio de brasas queimar essências
O repuxo tripudia sôbre o tanque dança de guizos Enfim uma obra que terminou cedo, mas já fazendo sentir todo o impacto de uma nova infra-estrutura sôbre a linguagem do poeta, onde fundo e forma entravam em franca dialética.
Se formos analisar o depoimento de Mário de Andrade, veremos que Luís Aranha, aos vinte e poucos anos, parou de fazer poesia dentro de uma epécie de contingência mallarmaica:… “noto uma indecisão vasta de resolver de maneira impura , vital, o seu problema de poesia.”… “Julgo descobrir na mudez dêle uma saciedade radical. Não na Poesia. Das poesias.”
Após evidenciar uma capacidade bem acima daquela da maioria de seus pares do modernismo, o seu silêncio pode também conter, e pelo menos intuitivamente, assim é, o depoimento de uma crise de que, hoje em dia, ainda se entende por verso, e a insubsistência da tradicional sintaxe discursiva como meio eficaz de fundar uma linguagem poética adequada à solicitações do nosso tempo. Mas de qualquer forma, o que êle produziu permanece como um dos marcos autênticos na busca dessa linguagem, na conquista de uma visada restauradora que constitui a característica essencial do espírito de 22.

Correio da Manhã
24/03/1962

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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