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A Questão Participante

No momento em que o país atravessa uma importante conjuntura, traduzida por uma crise do processo político, em face do próprio desenvolvimento, volta-se, no terreno da criação artística, à intensificação do problema participante. Êsse desenvolvimento, criticado pela maneira com que se realizou – e, daí, a cunhagem do têrmo “desenvolvimento”, originando-se o sufixo numa carga pejorativa – teve como principal efeito um processo de industrialização galopante, a forjar duas ou mais realidades sócio-econômicas-financeiras. Em conseqüência, as elites culturais da região mais cosmopolita e industrialmente avançada, sob o impacto do desenvolvimento, tomam consciência das relações e condicionamento dos modos de intuir e de apreender com as mutações da infraestrutura, onde novos materiais e técnicas ganham proeminência.
No campo específico da poesia, o movimento concreto espelhou diretamente essa modificação de base, em seus reflexos sôbre a inteligência formulativa. Já era, o concretismo, participante, porque participar, em primeira instância, invoca uma identidade do artista com a infraestrutura de materiais que estabelece as possibilidades de alcance dos meios de comunicação, sincronizados êstes dom a eficácia da informação. Não importa que tal informação denote de imediato uma denúncia ou constatação de uma causa pública ou de determinada classe social – numa fase inicial e, mesmo a posteriori na constância de uma dialética, o que vale é a comprovação de uma capacidade produtiva do instrumento estético, a sua pujança em inaugurar um ciclo formativo.
Contudo, muitos poetas nossos, sem jamais terem apresentado êsse fundamental poder de invenção, nem mesmo demonstrando qualquer amadurecimento cultural para meditar sôbre o seu ofício, há muito nomeiam-se participantes e, em geral, com visitas a acusar as atividades de pesquisas e de experiências de outros, que, julgam êles, mantêm-se distantes do interêsse coletivo, lançam a pecha do denominado “formalismo”- têrmo de enorme dubiedade filosófica para o sentido em que tentam empregá-lo. Praticam tais acusadores uma poesia piegas e ociosa tão distante do processo de seu tempo, como um feitor de roça frente a um cérebro eletrônico. Traficam com o “humano”, sofrem de um conteudismo compulsivo, inócuo funcionalmente, embora, muitas vêzes, essa ânsia em ser participante esteja a encobrir uma outra, bem mais compensadora, que se chama sucesso. Aliás Trotski, em
Literatura em Revolução, invoca o caso dos inúmeros poetas que viviam a atacar a burguesia e o regime antes da revolução e, com o advento desta, ocorreu simplesmente que todos os capitalistas e latifundiários fugiram da União Soviética, levando a tiracolo o seu advogado e o seu poeta…
Um problema cultural transcende os rótulos abstratizantes das necessidades reinvindicatórias dos que rodeiam o artista; e a missão dêste está à margem daquela outra de alimentar e prover o bem geral de imediato. A cultura já envolve um complexo humanístico. Procurar um dirigismo meramente temático para a atuação do artista, sem se ater para o que funda qualquer teoria sôbre o problema do conhecimento – as formas, o como – será cair num idealismo puro, nocivo em sua aplicação, a reverter um método de pressão ou pressão – seja do stalinismo ou das associações puritanas: o tema varia, porém a alienação é a mesma. Será, em têrmos nacionais, perde-se novamente no superado fla-flu, USA X URSS, direita x esquerda e quejandos. Esta arte utópica, de pronto aplauso e assimilação pelo povo, não existe. Citar Marx, por exemplo, deslocado do âmbito específico de uma dialética onde funcionam as suas idéias, a fim de justificar um versejar inofensivo, caracteriza-se como um contrasssenso. Pois, se nenhum operário e poucos intelecuais compreendem a poesia concreta ou o L’Année Dernière à Marienbad, também raríssimos são os operários que tenham lido o próprio Marx, da mesma maneira que poucos são os poetas populares que conhecem seu pensamento a fundo. E, a ter validade a tese, um Dante ou um Descartes estariam também condenados, já que, apesar dos séculos decorridos, continuam a ser leitura de alguns especialistas.
No caso, o argumento de Maiakowski, justamente o grande poeta da revolução, é básico. Para êle, a questão de um livro ser ou não ser lido por muitos é, em seu tempo, um fator secundário. O livro pode ser lido por uns poucos tão somente e, ainda assim, ser útil quando se trata de uma obra que encerra um estímulo para os produtores. Maiakowski compara a sua apreensão, como aquela de uma fonte de energia elétrica, que vai-se distribuindo através de subestações, até chegar às lâmpadas em cada lar. O consumo imediato é um elemento supérfluo. E no Brasil do superanalfabetismo, que jamais será solucionado pelas rondilhas ou decassílabos de um versário lamurioso, quando êsse consumo acontece no seio das classes desfavorecidas, incide muito mais nas cigarras de Olegário ou no parnasianismo bilaqueano, do que no fabulário dito engagé de alguns vates de hoje em dia.
Existe assim um problema radical que é o da produção – conferido à palavra um sentido restrito, vinculado não ao simples fazer, mas ao fazer consciente da sua efetividade num processo que se delineia. No mundo moderno, da segunda revolução industrial, as relações homem-máquina constituem um dado fundamental para o encaminhamento das indagações a respeito dessa efeitividade. E, aqui, muitas vêzes, através da produção isolada, individual, de um artista que ataque mais diretamente um campo ético, enfrente a moral da época, os costumes, deixando as implicações político-sociais num segundo plano, ocorre paradoxalmente a chamada participação. Não é uma forma menor de participação, pois uma revolução autêntica tem forçosamente de se desdobrar, em paralelo, nas duas frentes: a da satisfação coletiva, do reequilibrio econômico e aquela da adequação do pensamento a uma nova espécie de mitologia condicionada a uma realidade concreta de experiências com a qual se defronta o indivíduo. Escritores como Antonin Artaud, Alfred Jarry, Henry Miller, ou, para ficar no Brasil, um Oswald de Andrade ou um Nelson Rodrigues, são importantes nesse aspecto participante, onde o próprio tem e as palavras participam, provocando um choque imediato e, conscientemente ou não, denunciando um tipo de comportamento burguês inteiramente alienado. Porque a revolução completa tem de prover um tipo de comportamento adequado a uma nova situação infraestrutural – só assim os seus elementos renovadores serão absorvidos e utilizados com um máximo de rendimento social. É só assistir ao filme soviético A Balada do Soldado para constatar a contradição que representa: uma diluição vulgar do sentimentalismo puritano do universo capitalista, numa glorificação canhestra à maternidade. A família mantém-se como instituição primaz e o culto religioso foi apenas trocado pelo do Estado – mas, na forma de aplicação, é apenas outro exemplo da simples variação de temas.
Jean-Louis Bédouin, em seu estudo sôbre André Breton, delimita um posicionamento preciso, no trecho que, a seguir, transcrevemos:
“Acreditamos que o espírito e os meios de uma revolução devem ser, hoje, determinados através de uma maneira radicalmente nova. Já falei, acima, de uma revolução total. Veremos que essas palavras, por mais vagas que pareçam à primeira vista, ganham todo o seu valor à luz de certas considerações que agora iremos desenvolver. Se examinarmos, de fato, todos os movimentos revolucionários ocorridos até nossos dias, vê-mo-los se ater únicamente às realidades materiais, econômicas e políticas. A revolução é inteiramente absorvida pela luta de grupos sociais, opostos uns aos outros devido a diferentes interêsses na repartição de riquezas. Sob o envólucro da idelogia, atingem-se apenas às realidades econômicas. Onda após onda, os movimentos de emancipação tropeçam, há dois séculos, na resistência das estruturas do pensamento, que condicionavam a existência humana nos regimes econômicos e políticos que se tentava derrubar. Estas estruturas saíam intactas da luta e, finalmente, triunfavam sôbre a própria revolução. Definida somente como oposição a realidades materiais, a vontade de transformar o mundo, até agora, apenas obteve fracasso, mais ou menos compensados por ganhos igualmentes materiais, incessamente ameaçados e, muitas vêzes, retomados. Tudo leva a crer que será sempre o mesmo, enquanto as revoluções se adstringirem a certos aspectos particulares das condições sociais de vida, sem atacar diretamente a estrutura espiritual da sociedade. Diante de tantos fracassos, julgamos ser tempo de esclarecer os espíritos sobre o verdadeiro problema revolucionário: a transformação não mais somente das relações econômicas que dividem entre elas as classes sociais, mas aquela das relações intelectuais e morais que fundam a exigência dos homens e das civilizações. Apenas a reviravolta dêsse segundo grupo de relações é de natureza capaz de assegurar a transformação da vida, dentro da transformação do mundo.
Os diversos movimentos revolucionários que tivemos ocasião de conhecer e que conhecemos, hão de desaparecer com a mesma civilização que os determinou. Por civilização compreendemos a textura particular dos conhecimentos e valores que formam a relação global homem-universo, do modo em que êle se manifesta num momento da história, num mito. O mito é análogo a uma lei matemática que pode traduzir, sob uma mesma forma, vários fenômenos diferentes, mas que, por causa disso, possuem uma relação constante entre si. É essa relação que as reformas econômicas e políticas não atingem. É precisamente ela que torna-se necessária modificar, quando o mundo não é mais habitável para o homem, nem mais compreensível para o seu espírito – quando êsse mundo é absurdo. A revolução não deve apenas organizar-se contra um regime capitalista, mas, da mesma maneira, contra uma civilização cristã.
(…) A primeira tarefa que se oferece à consciência é, então, repensar a própria idéia de revolução, em função do drama atual.”
Algumas proposições de Bédouin pecam por um excesso de generalidade e pela ausência de uma formulação mais completa – procurava o autor defender a atitude surrealista no plano filosófico e as possibilidades de aliança, no terreno político, com o partido comunista. Mas o problema que êle ergue é fundamental, no sentido da destruição de certos valores ainda fixados para o homem e que são incoerentes com a sua própria atividade de produção. Êste modo de produção, correlacionado às constantes infraestruturais, a partir da lei da relatividade, leva ao estabelecimento de um nôvo humanismo, onde um sistema de valores jamais poderá permanecer sob um critério hierárquico, numa pirâmide que conduz ao absoluto. E o surrealismo, mesmo tendo sido revolucionário no tocante ao comportamento, ao estar do indivíduo pecou pela base por não haver produzido e, no afã destruidor, não haver estabelecido uma obra que orientasse decisisvamente algumas formas de percepção do processo cosmológico, já agora na era nuclear e espacial. A carência de envidar um contrôle do sensível, de extrair as constantes de uma dialética entre a fenomenologia e o racionalismo, apoiando numa realidade de materiais, foi-lhe fatal.
O desafio, portanto, continua à frente. E para lutar contra o obscurantismo, vasado em princípios firmados, tão-somente em puras abstrações, cabe ao intelectual lutar construtivamente, isto é, de modo criativo, e preservando a sua liberdade responsável.






Correio da Manhã
18/08/1962

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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