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Estética do Fado

Quem, em nossa música popular, aprecia as serestas, está na trilha do fado (que vem de fatum e, segundo Pinto de Carvalho, traduz uma opção trágica pelo destino). De Alfredo Duarte Marceneiro, Amália e Celeste Rodrigues, Carlos Ramos, Maria Tereza de Noronha, João Ferreira Rosa ou Mário Rocha até as serestas de Francisco Alves, Sílvio Caldas, Orlando Silva, Vicente Celestino, a diferença é apenas uma questão de maior derramamento nosso, em contraposição à secura do fadista castiço, que, às vêzes, quase canta a palo seco. Aliás, o fado rigoroso não admite variações, que só devem ocorrer quando os guitarristas o tocam sem ser em função de acompanhamento do canto, quando estão o encorpamento sonoro da melodia pode ser diversificado.
Mário de Andrade, em seu artigo, A Origem do Fado, embora reconhecendo a evidência de sua formatividade musical de caráter português, fêz notar que o têrmo já era aqui usado anteriormente. E cita A Música em Portugal, de Luiz de Freitas Branco, onde êsse autor invoca a influência do nosso lundum, “canto dançado”, que, após o regresso de D. João VI a Portugal, foi invadindo as diversas camadas da sociedade. A verdade é que, a partir de 1840, o fado dominava as ruas de Lisboa (embora também haja a grande tradição, mais monocórdia, medieval, do fado de Coimbra, e de acôrdo com Pinto de Carvalho, até por volta de 1869 imperava apenas nos bordéis, ruas, baiucas ou vielas. É praticamente a mesma trajetória de tôdas as formas consagradas de música popular. A partir daquele período, começa a ganhar os salões e as praias, onde os elegantes apareciam, a gente bem da época.
De qualquer forma, o necessário é fixar o fado como uma fonte válida de criação, possuindo a sua estética, as suas peças antológicas, assim como o tango, o samba, o jazz, a valsa. É claro que, como estrutura fechada (em contraposição à concepção arte aberta, de Haroldo de Campos e, depois, Humberto Ecco) a sua aceitação envolve aquêle estar místico diante da obra (assim como diante da Madona, de Bellini) e requer uma execução, uma interpretação precisa, como o jôgo rígido da ópera.
Para Ernesto Vieira, o modêlo primitivo consistia num período de 8 compassos de dois quartos, dividido em 2 metros iguais e simétricos, de 2 desenhos cada um. Lambertini, em Chansons et Instruments (apud Pinto de Carvalho), assevera que o motivo principal do allegretto da 7ª Sinfonia de Beethoven dá uma idéia do fado, não apenas na divisão rítmica, mas ainda na forma da melodia. Dona Carolina Michaellis registra que as letras dêle, pela forma estrófica, se vinculam a uma espécie eclesiástica. Enfim, para Teófilo Braga, o fado, quanto à música, reflete um derivativo das melopéias árabes, e, quando à letra, consistiu a última transformação dos romances, aravias ou narrativas heróicas da Idade Média. "Línguas morais d'aravias": pode-se dizer que é a suma do cante popular tradicional em Portugal, recondicionada em sua estruturação à contribuição ocidental da melodia (o mesmo, de certa forma, se deu no samba, com relação, aí à tradição dos ritmos africanos).
Da mesma forma que a maioria dos brasileiros não confunde o samba autêntico com aquelas aberrações aboleradas de uma determinada fase ou com aquêles hinários exportados, não se deve confundir o verdadeiro fado com a maioria dos intérpretes demarrantes, que aqui baixam e atacam os restaurantes e as televisões. Deturpado em sua execução, êle cairá em Vicente Celestino (sem ser o próprio, o que é mais grave) o fado castiço, por exemplo, entre outras características, encerra uma monotonia funcional do metro e do canto, os versos, na maioria dos casos, obedecem a redondilha maior (sete sílabas, o mais maleável em língua portuguêsa) e são repetidos geralmente, um a um ou dois a dois. Embora, no Brasil, a grande fama de fadista - O Marceneiro, O Calafate, O Carpinteiro, O Pedreiro - quando, mormente, os cantores não eram profissionalizados, cantavam por cantar). O Marceneiro é um intérprete notável, de um rigor sem concessões, sentimento contido ou derramado, conforme a estrutura da peça, sendo que geralmente participa em parceria nas composições que canta. Várias delas são antológicas: Há Festa na Mouraria ("Desde amanhã, os fadistas/ jaquetão, calça esticada/ se apuram com galhardia/ seguem as praxes bairristas..."), O Amor É Água Que Corre ("tudo passa, tudo morre"), Fado Balada, Casa da Mariquinhas, Colchetes D'oiro (um dos melhores exemplos do fado corrido), O Marceneiro (fado em que o tema é o próprio intérprete - "Marceneiro tôda a vida, para cantar o fado até a morte”), O Que É o Fado.
Assim como existe o poema sôbre o poema, uma das características mais peculiares, aqui no caso, é a existência do fado sôbre o fado. São inúmeras as composições que especulam metafìsicamente e até formalmente, ou exaltam o fado. O Que é o Fado, já citado, de autoria do Conde de Sobral e de Marceneiro é um exemplo: "Eu não sei o que é o fado/ êsse canto magoado/ que tanta coisa resume..." Mas um dos ápices dessa vertente é, sem dúvida, o Fado da Adiça, uma das grandes criações de Amália Rodrigues: "Por muito que se disser/ que o fado é canalha/ não é fadista quem quer/ só é fadista quem calha/ o destino é linha reta/ traçada à primeira vista/ como se nasce poeta/ também se nasce fadista..."
Outro aspecto do maior interêsse lingüístico, no approach, é a obsessão pela palavra (só portuguêsa, intraduzível) saudade, que se reitera não apenas tematicamente, em inúmeras peças, mas é utilizada como se fôsse substantivo concreto e, no campo do significado, como se fôsse um sêr vivo ou entidade imanente. Veja-se, por exemplo, aquêle, sob o nome de Saudade, de Linhares Barbosa (aliás, talvez a maior interpretação do cantor Carlos Ramos): "Sabendo que em tua ausência/ prazer algum me conforta/ no momento em que saíste/ a saudade entrou-me à porta/ andou em volta da casa/ como se ela sua fôsse..." e adiante até o momento em que a própria saudade substitui a amada ausente. Outra interpretação de Carlos Ramos, Veio a Saudade (de Aníbal Nazaré e Miguel Ramos) repete o exemplo: "Veio a saudade/ sentar-se junto de mim/ falou-me com amizade/ ninguém me falara assim...". É o mesmo caso de Saudade Vai-te Embora, de Júlio de Souza: "Saudade, vai-te embora/ do meu peito tão cansado/ levando para bem longe êste meu fado..."
Enfim, poder-se-ia realizar uma antologia poética do fado, por algumas letras notáveis, onde um dos fatôres principais da criatividade que é a rima-surprêsa mantém-se presente, com a instigação sonora, imagética e metafórica. Aqui está um dos clássicos: "Teus olhos são passarinhos/ que ainda não sabem voar/ cuidado que andam aos ninhos/ os rapazes do lugar/ foi Deus quem criou as rosas/ lhes deu forma e deu perfume/ deu gotinhas de lume/ às estrelas estrêlas radiosas." Apesar de possuir uma formatividade mais cultural, aproxima-se daquele "mau gosto” genial ou das metáforas dos nossos antigos Cândido das Neves "índio" ou Uriel Lourival. Ou então, o fabuloso fado petrosi (também grande interpretação de Amália), Cinco Pedras: "Lá porque tens cinco pedras/ num anel de estimação/ agora falas comigo/ com cinco pedras na mão/ enquanto nesses brilhantes/ tens soberba e tens vaidade/ eu tenho as pedras da rua/ prá passear à vontade/ pobre de mim não sabia/ que o teu olhar sedutor/ não errava pontaria/ como a pedra do pastor/ mas não passes sorridente/ alardear satisfeito/ pois hei de chamar-te à pedra/ pelo mal que me tens feito/ e há de ficar convencido/ da afirmação consagrada/ quem tem telhado de vidro/ não deve andar à pedrada."
O fado tem sua estética, como qualquer arte popular autêntica, isto é, feita pelo povo e, não, por poetas "participantes". Lamentável que, assim como já se vai fazendo no Brasil e Argentina (com o samba e o tango), em Portugal não se comece a ampliar as publicações com estudos sérios e pesquisas a respeito do fado.

Correio da Manhã
14/05/1967

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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