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Rosa da Prosa

Anteontem, Dia da Bandeira. Será também o dia da morte de João Guimarães Rosa, não só, talvez, o maior prosador em língua portuguesa de todos os tempos, mas, também, um dos escritores mais autenticamente brasileiros, apesar da perplexidade que - até hoje - a sua linguagem possa despertar. Rosa da prosa; o nosso Rosa. Porque falar apenas de James Joyce (ou, principalmente, Ulysses e Finnegans Wake) ou de todos os escritores que o antecederam no uso das palavras-valise (porte-mantean), do jogo de sílabas ou trocadilho (pun), ou de todas as escolas barrocas, não será suficiente para explicar e definir o fenômeno Rosa. Essa linguagem que também reflete a mescla de refluxos arcaicos com os dialetos regionais, vazada no exprimir de uma profunda acepção mística, brotou e filtrou-se na experiência vital do próprio escritor, que soube encorpá-la nos recursos de uma cultura refinada. Aliás, um exemplo da cultura de Rosa, emerge, logo, no intróito do seu mais recente livro, Tutaméia (Terceiras Estórias), quando aborda com observações de requintada sutileza a questão do anedotário.
Não fosse a sua extraordinária vertente de fabulista, seria, inclusive, bastante difícil classificá-lo especificamente como romancista, novelista, contista - em suma, prosador. Em artigo anterior, publicado no CORREIO DA MANHÃ, tentávamos exatamente situá-lo como “prosador impuro”, na medida em que o texto seu, devido a inúmeras características estruturais, aproximava-se da poesia. O prosador puro seria aquele, cuja transparência do texto escrito, com relação ao acionamento da imaginação do leitor, era imediata, isto é, forja um condicionamento de área semântica simples e direto. O impuro, por seu turno, utilizando de um agenciamento mais complexo dos elementos de linguagem - modificando ou até recriando-os - subdivide a comunicação em múltiplas etapas, tornando a leitura mais densa. E - também - bastante rica quando acerta no alvo. Guimarães Rosa, quase sempre, acertava na mosca da invenção. Por isso, foi o grande renovador da ficção, assim também como já o fôra, antes, Oswald de Andrade.
Pode-se ao mesmo tempo dizer que talvez haja sido o último grande artesão do texto, numa época em que o texto escrito sofre o impacto dos grandes meios de comunicação modernos, de massa: cinema, televisão, rádio, publicidade, cartazes. O esmero e o rigor com que ele trabalhava em cada obra, ou praticamente em tudo a que se dedicava, era de índole flaubertiana. E, aí, baixava na terra o poeta, pesando palavra atrás de palavra, sílaba atrás de sílaba: a inspiração expirada após a maturação e o burilar implacável. Rigor de poeta - vigor de ficcionista. O fabulário rosiano é dos mais ricos existentes, os entrechos dos mais originais. É só recordar narrativas como aquela do homem que viajou a fim de procurar saber o significado de uma palavra - famigerado - em Primeiras Estórias, ou, em Tutaméia, logo de início, o notável conto do cego bonito, narrado pelo seu guia, a quem as mulheres pediam para não denunciar a sua feiura. Foi Guimarães Rosa, aliás, quem cunhou o termo estória (já incorporado à língua) a fim de fazer a distinção funcional entre a ficção e a dissertação sobre fatos verídicos, história. E não deixa justamente de ser uma das metas do escritor ou do artista: renovar a língua (regional), na medida em que opere através da linguagem (geral).
“Diadorim do seu amor, põe o teu pezinho em cera branca que eu rastreio a flor de tuas passadas”. Quem assim escreve não é apenas o romancista; é o poeta. Rastreia-se a poesia, o falar poético, por toda a prosa de Rosa. E a dicção musical, cintilante, é superestrutura de um respigar e captar incessante de pepitas do terralém ou vidalém. Esforço de meditação profunda para além de uma realidade racional, embora fincado, lastreado no espetáculo terreno. Nesse sentido, aí paira o monumento de prosa, de romance em língua portuguesa, que é o Grande Sertão: Veredas. Nos “Gerais” (região sertaneja de Minas) o jagunço Riobaldo (“Tatarana”) e o seu amigo, Diadorim (e/ou também a amada) vivem a epopéia de aventura e mistério (não o mistério somente contingencial, porém aquele que conduz à indução telúrica e metafísica). São centenas de páginas com a sazão de encantamento intacta, onde a densidade da fabulação poética não sofre de hiato ou jaça, devido à invenção permanente do escritor e o seu rigor férreo na luta com a palavra. E, aqui, reside uma das suas coisas muito próprias, que o isolaram como autor. A densidade peculiar da prosa poética, calcada também nas inversões comuns de oração, nas imagens preciosas, na surpresa, a quase cada linha, das recriações léxicas ou morfológicas, conferiu-lhe ao texto, ao acompanhamento da estória pelo leitor, uma duração também própria, peculiar, em conotação funcional com os acontecimentos descritos na fábula. Pode-se querer acusar essa durée de leitura de estar tão somente ao alcance das inteligências cultivadas. Todavia, a ideia de compromisso de escritor com o público jamais poderia ser alvo de considerações assim simplistas, mesmo porque ela envolve um duplo compromisso de esforço: o do escritor (ou do artista em geral) no “fazer” e o do público em decifrar, descobrir, desvendar e o que corresponde àquele “desfazer” construtivo da intelecção a descerrar um processo. Foi por isso mesmo que Ezra Pound definiu os artistas como “antenas da raça”.
Em Grande Sertão: Veredas já se detectava aquela técnica rosiana de o personagem da estória, em moldes diretamente coloquiais, dirigir-se ao leitor - “o senhor” - a facultar uma tensão de relato extremamente pessoal. Mas num conto longo, ainda estranhamente inédito em livro, O Tio Iauaretê (Tio Jaguar) - lançado há alguns anos na revista Senhor - a mesma técnica leva a consequências estruturais de imensa radicalidade, dentro das surpresas proporcionadas pela atividade criativa. Pode-se considerar, em matéria de texto, o mais inventivo do autor. O protagonista dialoga com o leitor, enquanto sorve pinga, e conta suas peripécias, inclusive aquela - de início, estranhíssima - de seus amores com uma onça, Maria-Maria. Quanto mais o álcool se estranha, o seu falar mais vai ganhando uma infiltração do idioma tupi. Ao final, a impregnação é total - o homem se transforma em jaguar - vê o próprio leitor sacar do revólver contra ele - os tiros - os pedaços de palavras explodem, ininteligíveis.
Mais do que nenhuma, a estória do Tio Jaguar evidencia a preocupação de atuar sobre a linguagem. Uma preocupação até ao nível mágico, alquímico. Há alguns anos, Augusto de Campos publicou, na Revista do Livro, um ensaio, sob o título Um Lance de Dês do Grande Sertão, onde, ao fazer o trocadilho com o poema-base de Mallarmé, Um Lance de Dados (Un Coup de Dés), descortinava a “temática de timbres” weberniana de Rosa, cuja nota dominante, naquele romance, seria a sílaba de. Essa mesma sílaba permanece nas palavras que emprega para a dicotomia radial, bem & mal: deus e demo. Não é à-toa, portanto, a preocupação e, assim também, as coincidências: ambas têm quatro letras e são referentes à relatividade dos fatos e do comportamento do homem, o deus-demo ou o demodeus. “O diabo na rua no meio do redemunho” - a preocupação de Guimarães Rosa com a coisificação do diabo leva-o a fazer um levantamento de todos os substantivos concretos referentes a ele. E inserir a nomeação capital - demo - dentro das palavras; cf. redemunho. Uma das passagens mais belas, inclusive com a aura místico-misteriosa que a embebe, é a da saída de Riobaldo para o encontro com o demônio. A instigante ambiguidade referencial banha várias conjunturas, desde a religiosa até a amorosa ou sexual. Ou, então, nada melhor do que a ambiguidade com leit-motiv da indução semântica, a fim de operar com o aleatório da memória, numa outra de suas obras-primas, o conto Nenhum Nenhuma.
Em todas as ocasiões que conversamos longamente com Guimarães Rosa, foi possível constatar a inteligência agudíssima e a evidência de uma intensa vida interior que corroboram a sua obra. Falava de como permanecia, à noite, horas a fio, procurando detectar a linguagem dos bichos, o dom das aves. De como andava a cavalo com um caderninho de notas dependurado no pescoço, a fim de registrar os ditos, histórias, ou pensamentos dos habitantes do interior. De como anotava em pedaços de papel e guardava, para uso posterior, as imagens e metáforas - que de repente - lhe vinham à imaginação. Era o material bruto. Ou nos mostrava as correções que estava a fazer de uma tradução para o francês de um conto de sua autoria. As correções - infalivelmente - para melhor. Embora já esteja traduzido para diversas línguas, Rosa era intraduzível - em sua essência, aquela da gesticulação verbal - no que há de tão brasileiro na raiz de sua escrita. Talvez só ele próprio estivesse capaz de uma cabal autotradução, conhecendo tão bem como ele conhecia diversos idiomas estrangeiros. Disse-nos uma vez que não conhecia todas as línguas, mas que procurava saber a gramática de todas elas. Coerência com a sua preocupação de agir mediante as formulações gerais da linguagem, com a caça daquelas identidades e analogias que lhes permitiriam organizar um cosmos linguístico.

***

João Guimarães Rosa, que nasceu em Codisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908, formou-se em Medicina, praticou-a no interior, e serviu na Força Pública do seu Estado natal, antes de ingressar na carreira de diplomata, a qual foi agora cortada, quando - já há muito - dirigia a Divisão de Fronteiras do Itamarati havendo também participado de delegações a conferências internacionais. Como escritor, apresentou-se pela primeira vez com um volume de poesias, Magma, que recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Todavia a sua projeção fulminante se deu com o livro de novelas e contos, Sagarana, escrito em 1937 e só publicado em 1946. Aí, já se denotavam as características estilísticas que iriam assumir um grau de permanência, ganhando densidade com o tempo e com a especulação inventiva. O seu reaparecimento literário só se deu na década de 50, com a série de novelas enfeixadas no livro Corpo de Baile. Nessa altura, denotava-se estar diante de um dos grandes escritores da língua: a estória do Dão-La-La-Lão já passava, por exemplo, a merecer lugar marcado nas antologias de prosa. Logo depois, então, o salto definitivo com Grande Sertão: Veredas - agora, inclusive, glória internacional do romance, traduzido para o inglês, francês, alemão e italiano. Houve depois uma sequência de contos ou novelas publicados em jornais e revistas, até que surgissem as Primeiras Estórias, onde a generosidade criativa continuava a jorrar fácil. Há pouco, veio-nos Tutaméia - Terceiras Estórias, entremeadas de prefácios, um novo recurso do autor de pôr e dispor dos formulários, no caso o prefácio já atuando como uma espécie de componente do texto e, não, como simples introdução à margem da obra. E lá estão contos como Desenredo, tratamento do tema da mulher adúltera, em destinação também ontológica.
Embora eleito para a Academia, em agosto de 1963 (34 votos a favor e dois em branco - nenhum contra), para a cadeira número 2, antes ocupada por João Neves da Fontoura, Guimarães Rosa, só na semana passada, veio a tomar posse, já que protelava enfrentar os discursos e todo um cerimonial de tradição. Antes disso, como membro (Câmara de Letras) do Conselho Federal de Cultura, participou da comissão encarregada de opinar sobre a unificação da ortografia portuguesa, havendo o seu parecer de relator desfechado debates dentro da maior repercussão.
Súbito - domingo de noite - enfarte - a morte. Morte? “Mire e admire” - “me vou indo”. No céu? No ar? “Nonada”. Tudo ou nada; mas a obra ao léu do infinito. Rosa da Prosa.

Correio da Manhã
21/11/1967

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

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Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
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A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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