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Ver viver rever reviver escrever escreviver

A proliferação de poemas sobre o poema, romances sobre o romance, em suma, da obra sobre ela própria, tão típica e crescente em nosso século, já não é novidade, nem sequer um fato espantoso. É um sintoma. Discute-se muito a respeito do radicalismo dos movimentos de vanguarda, que alegam ter acabado o verso, ter acabado o romance ou a pintura de cavalete. Mas esse radicalismo não é sinônimo de intolerância, ou uma inversão tautológica dos critérios de verticalizar valores absolutos. É posição estratégica, é esforço em desbravar a incerteza do futuro. Pois, no caso dessa radicalização, a afirmativa de morte do verso ou do romance baseia-se no realismo de uma aferição quantitativa. Ela pode se resumir nesta pergunta-comparação: no primeiro quarto do século, quantos romances, dentro de uma média feral de opiniões, eram considerados bons, grandes? Quantos poemas também eram assim julgados? E, hoje, quantos & quantos? Para cada romance ou poema bom que agora apareça (e, em matéria de poesia, estamos nos referindo ao poema discursivo, versificado), existiam dezenas no primeiro quarto do século. E depois de Joyce e Kafka? E depois de Pound, Cummings ou Maiakóvski, da revalorização do Lance de Dados de Mallarmé?
A defasagem quantitativa denuncia o impasse. E ele tem muito menos a ver com a mauvaise conscience do escritor burguês esquerdista, de que fala Sartre, do que com uma coisa muito mais concreta: a impotência do instrumento; ou a crise do artesanato. É essa sensação de impotência que, exatamente, conduz ao poema sobre o poema, o libro sobre o livro. O escritor oscila entre duas opções negativas: não ser lido ou praticar a impostura para ser lido, embora saiba que a história, depois, será inexorável para condená-lo ao esquecimento. Existe geralmente uma etiqueta histórico-cultural condicionando, estimulando o interesse em ler Hugo, Sterne, Balzac ou o nosso Alencar, assim como, neste século, já o faz em relação a Kafka, Joyce ou o antigo Dos Passos e o fará com o nosso Guimarães Rosa. E, idem idem, com Bandeira, Drummond ou João Cabral. Mas como ler, em termos culturais, sucessores, diluidores, êmulos, epígonos ou imitadores? O processo também é inexorável. Mesmo porque o acondicionamento da atividade cognoscitiva ampliou-se avassaladoramente na chamada ensaística, quando outras ciências ou sistemas especulativos ganharam status definido para a investigação do comportamento humano, biológico, social, etc. A psicologia, psicanálise, psiquiatria, parapsicologia, sociologia, antropologia e até a semiologia roubaram grande parte das funções do ficcionista. Freud e Marx já haiam firmado um turning-point decisivo. E, mais tarde, a cibernética ou a psicofarmacologia. Impossível na cadeia de especializações dos tempos modernos a repetição do fenômeno Leonardo. O artista mexendo nisso tudo ficará, para escrever, como um macaco em loja de vidros.
A consciência dessas questões alastra-se. Roland Barthes, por exemplo - um dos principais representantes da chamada crítica estruturalista, em Le Degré Zéro de L’Écriture, que corresponde à montagem de uma série de artigos escritos por volta de 1953, já abordou o problema com grande acuidade. Procurando, de início, definir o que é a escrita, qualifica-a como um elo entre criação e sociedade, a linguagem literária transformada pela sua destinação social, enfim, a forma captada em sua intenção humana e, assim, vinculada às grandes crises da história. No capítulo referente à escrita política, Barthes realiza algumas das observações mais fascinantes do seu livro, ao analisar a escrita estalinista. Segundo ele, ao contrário da escrita marxista, a estalinista se consiste numa verdadeira tautologia, pois não visa a fundar uma explicação marxista dos fatos ou uma racionalidade revolucionária dos atos, e, sim, a dar o real sob uma forma que atribui como exata. Desse modo, e é ainda RB quem discerne, no mundo estalinista, a definição, a separação entre bem e mal, ocupa toda a linguagem; não existem mais termos sem valor e a escrita funciona como a economia de um processo. Inexiste neste caso o sursis entre denominação e julgamento, a linguagem é inteiramente fechada em si, pois um valor sempre é dado como explicação de outro valor. A partir daí é que RB anota com agudeza a contradição de ser a escrita dos escritores comunistas uma autêntica rarefação da escrita burguesa. E é também nessa faixa que radiografa a contradição dos artistas engajados, participantes.
Barthes conclui que a literatura transformou-se na utopia da linguagem. O escritor constata “uma trágica disparidade entre o que faz e o que vê; sob seus olhos, o mundo civil forma agora uma verdadeira Natureza, e esta Natureza fala, elabora linguagens vivas das quais o escritor fica excluído: entre seus dedos, a história coloca um instrumento decorativo e comprometedor, uma escrita que ele herdou de uma história diversa e anterior, da qual não é responsável, mas que, no entanto, constitui a única que pode usar”. “Da mesma forma que a arte moderna inteira, a escrita literária traz ao mesmo tempo o sonho e a alienação da História: como necessidade, ela atesta a ruptura das linguagens, inseparável da ruptura de classes: como liberdade, traduz a consciência dessa ruptura e o próprio esforço de ultrapassá-la”. “A multiplicação de escritas institui uma nova literatura, na medida em que esta última apenas inventa a sua linguagem a fim de se fundar com um projeto: a literatura torna-se a utopia da linguagem”.
As palavras de Barthes só fizeram adquirir maior consistência ao correr do tempo. As relações ver-viver-escrever, em suma, o escreviver, ganharam um condicionamento extremamente complexo na atualidade, em comparação com a época em que a industrialização ainda não interferia de modo tão decisivo nas ações e relações sociais. É sabido que tal industrialização acionou violentamente, em especial a partir da automação (início da era da chamada segunda revolução industrial), os recursos de comunicação de massas. Hoje, o indivíduo não precisa sequer sair de casa para ser condicionado e influenciado por eles: televisão, rádio, imprensa escrita. O viver perigosamente, heroicamente, intensamente, deixou de ser, na maioria dos casos, resultado de uma participação concreta, pessoal, nos eventos do meio circundante de cada indivíduo - esta participação passou a ser indireta, simbólica, porém não menos vigorosa ou catártica. Até então, e a partir da derrocada da civilização grega, vida e arte começaram paulatinamente a refletir coisas e atitudes extremamente distantes. Escrever um texto ou pintar um quadro chegava até a justificar a ação, participação do artista, a fim de que ele pudesse entregar-se à atuação criativa baseada em sua experiência. Ou era o recolher-se na meditação espiritual, mergulhar nos fluxos de estesia das obras dos grandes mestres.
Hoje, as duas experiências - a vivencial e a estética - começam a se mesclar novamente. Talvez não haja melhor exemplo concreto disso do que os filmes de Jean-Luc Godard. Vidarte ou artevida: o viver requer menos participação direta e a vivência estética requer menos concentração espiritual. E como os meios de comunicação de massa possuem uma também poderosa capacidade reprodutiva de seus textos ou efeitos, enfim, como a informação encontra imensa amplitude receptora, os objetos estéticos, tomados como tal, na individualidade de coisa ou suporte de signos, vão perdendo a razão de ser. Na medida em que a máquina reprodutora substitui o artesanato manual, também o artesanato não utilitário, onde se insere aquela gratuidade essencial de toda obra de arte, entra em colapso. Crise, impasse e abertura da civilização industrial. O ato de escrever, como era tradicionalmente concebido, cai na alienação. O escrever, o redigir, será função de um contexto, de um dispositivo de criação ou comunicação mais complexo.
A fala entre os homens, a intercomunicação vocal através da convenção de signos verbais, está mais distante da escrita do ficcionista pelo fato de que outros meios mais capazes surgiram para utilizá-la como elemento de criação ou informação estética. De início, até o mais simplório, porém ainda eficaz, é o da exploração da chamada música popular. Poetas, músicos de formação erudita e outros intelectuais voltam-se para ela - já não está sendo totalmente popular (isto é, feita pelo povo ou por boêmios da pequena burguesia intelectualmente descompromissados) e, sim, culta. Pois, ao menos, a junção com elementos sonoros forjados pelos instrumentos musicais já enriquece o texto.
O escrever encerra Prometheu atado entre dois espelhos: a função social e o autocompromisso. A libertação para o vôo será encontrar o meio que transmita eficazmente a junção dessas duas experiências: escreviver.

Correio da Manhã
04/02/1968

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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