Relançado agora pela Companhia das Letras, com introdução de Ruy Castro e orelha de Wilson Figueiredo, este bloco de 80 capítulos das “Memórias” de Nelson Rodrigues (agora devidamente ordenados) representa provavelmente o momento mais alto da prosa de seu autor. E capítulos como os de números 10, que remete ao título do livro, “A menina sem estrela”, 12, sobre o defunto e a gripe espanhola, 15, sobre o canastrão e o palavrão, 21 (a morte do irmão Roberto), 38 (Simão, o assassino), 40 (o plágio) ou 70 (o canalha), são rigorosamente antológicos. Mas isso não implica que existam altos e baixos: pelo contrário, o conjunto de textos é uniforme, no concerto não há mesmo dissonâncias.
São casos de acaso. Se o ministro da Justiça da época, Carlos Medeiros, não tivesse baixado aquela ridícula portaria, em outubro de 1966, proibindo o romance “O casamento”, de autoria de Nelson, este último, possivelmente, nunca haveria de enveredar pela sua grande prosa das “Memórias”, no “Correio da Manhã”, e, posteriormente, na longa sequência das “Confissões”, aqui no GLOBO, também com páginas antológicas.
Acontece que, baixada a portaria (e de nada adiantara a faixa de papel que a editora colocara em torno do livro, dizendo ser leitura para adultos), Nelson apareceu na televisão, polêmico e veemente, enfurecido, atacando o ato ministerial. Não era a primeira nem segunda vez que estava sendo vítima da censura. Mas agora essa mesma censura (um mal inevitável, enquanto houver Estado), não se voltava contra outra peça de teatro; tratava-se de um mero livro – e, ainda por cima, lançado com aqueles cuidados. Mas, por acaso eu já tinha o livro – uma pequena obra-prima no gênero – e, em cima da portaria, em 20-10-66, escrevi um artigo no “Correio da Manhã”, “O casamento e a revolução”, enaltecendo a obra e acusando violentamente o governo de então. Nelson quis me conhecer, veio em casa, acompanhado por Francisco Pedro do Coutto e Marcelo Soares de Moura e, então, Newton Rodrigues, na época diretor e redator-chefe do “Correio”, teve a idéia das “Memórias”. Nelson ficou fascinado com isso e, mais um ou dois almoços depois, tudo ficou acertado. Em fevereiro de 1967, iniciou a sua breve e feérica trajetória naquele jornal.
Velhos ditados – tipo “há males que vêm para bem” ou “Deus escreve certo por linhas tortas” – continuam regendo a complexidade do destino e da significação dos fatos. Através de “As confissões” – consequência das “Memórias” – o nosso teatrólogo transformou-se no escritor mais polêmico de determinado período; polêmico não mais principalmente devido à forma ou ao escândalo, mas em função das idéias políticas.
“A menina sem estrela” está aí. Entre ficção e realidade, entre conto e crônica, mostra o seu autor em todas as suas vertentes: jornalista, narrador, dramaturgo, humorista, ficcionista, memorialista. Muito dos mistérios de sua infância, da sua vida profissional, nos teatro ou nas redações sem falar nas tragédias que abalaram a sua vida familiar e sentimental. A vantagem das “Memórias” sobre a longa série de “A vida como ela é” é que, nesta última, o escritor era obrigado a inventar uma história, dia a dia, mesmo que fizesse referência a eventos reais. No outro caso, o leque de opções era mais amplo.
Aqui, permanecem todos os elementos de sua escrita original, impecável no tocante ao timing. O efeito de surpresa, do insólito, através do diálogo preciso, real, chocante. O adjetivo que, na prosa, é o carro-chefe de Nelson. Aliás, ele mesmo diz: “O adjetivo era a minha tara estilística”. E as metáforas, extremamente ricas, conferem o que se pode entender como tônus poético à sua prosa. Além disso, os personagens que, em grande parte, são os seus amigos ou conhecidos da vida real. Os amigos, mais tarde, iriam se transformar em “irmãos íntimos”. Enfim, suas obsessões. Ele próprio era incansável em doutrinar sobre a repetição – a necessidade de ser repetitivo. Certa vez, falou sobre isso durante um almoço inteiro. Vale também lembrar que as crônicas publicadas durante anos neste jornal – reunidas, em parte, em “À sombra as chuteiras imortais” – já continham os elementos desenvolvidos posteriormente: os amigos-personagens, fora jogadores, técnicos, dirigentes etc, a distorção intencional dos fatos, além de comentários sobre outros assuntos extra-esporte.
É possível separar nestas memórias grupos de capítulos sobre tema idêntico. Do 16 ao 20: Samuel Wainer e o jornal “Última Hora”; do 21 ao 27: Roberto Rodrigues e sua morte; do 35 ao 39: o sanatorinho de Campos de Jordão; do 42 ao 49, o 58 e, do 62 ao 66, o teatro e sua obra; o 51 e, do 54 ao 56, o Mangue. A par disso, aborda em vários capítulos alguns jornais e seus diretores e redatores, repórteres: além do mencionado “Última Hora”, O GLOBO, “A Noite”, “Crítica”, “A Manhã” e o “Jornal do Brasil”.
Outro fator que difere Nelson da maioria esmagadora dos demais memorialistas e autores de diários (íntimos ou notórios) é a sua feroz autocrítica: confessa-se injusto, vaidoso, invejoso, voyeur, ingrato e tome defeitos. Um autor que, na época em que se iniciou, tornou-se forçosamente maldito; e, insatisfeito, promoveu a automaldição. E note-se: o que o diferencia de outros autores noirs e pretensamente malditos e realistas é sua maior radicalidade. Pois, enquanto os outros escritores e teatrólogos nossos colocam as suas cenas fortes, abjetas, nos devidos locais – o prostíbulo, a penitenciária, a sarjeta etc – ele joga tudo para dentro da casa de família. Aí está a sua grandeza temática.
O elemento altamente inovador de sua prosa (também emerge no teatro) é a criação do personagem genérico, abstrato (aquele que sinaliza uma atitude permanente) e a lexicalização de expressões, transformando-as em autênticas formas complexas de adjetivação. Vamos a exemplos do primeiro caso, constantes deste livro: o falso cretino, o débil mental de babar na gravata, o fauno de tapete, o anão de Valesquez (o próprio autor, criança), a viúva machadiana, a prostituta vocacional. No segundo caso, entre outras: o calor de rachar catedrais, o óbvio ululante, o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt, o olho rútilo e o lábio trêmulo, a cascata artificial com filhote de jacaré, as cerdas bravas do javali (extraído de Eça de Queiroz – em “Notas contemporâneas”), só os profetas enxergam o óbvio, subir pelas paredes como uma largatixa profissional, só faltava pedir bis como na ópera, uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima, varado de luz. Sem falar nas imagens e metáforas inventadas aqui: “ela sorvia os dedos, um a um (do defunto), como aspargos”; “os ventos assanhavam as sombras nas esquinas”; “no meio pardieiros espectrais, tendo por fundo uma favela, o edifício da ‘Última Hora’ era um pavão enfático”; “uma calça de vinco antológico”.
Enfim, o fabuloso fazedor de frases – a melhor maneira de se dar a maturidade de um escritos dominando o idioma. “Psicologicamente, ainda não ocorreu para nós a abertura dos portos”; “ a mulher que ia ao ginecologista sentia-se, ela própria, uma adúltera”; “um defunto que não teve o seu bom terno, a sua boa camisa, a sua boa gravata – é mais cruel e ressentido do que um nero ultrajado”; “salto na estação e sou ferido pelo frio”; “o que nós chamamos de reputação é a soma de palavrões que inspiramos através dos tempos”. O capítulo 17 é importante porque ele fala sobre “ A vida como ela é” e discorre sobre o amor no matrimônio. E o 27 tem a mini história do nascimento de Confúcio: “Um dia, em certo jardim, uma virgem sonhava. De repente, veio um raio de sol e tocou-lhe o ventre. Assim, nasceu Confúcio, filho de uma virgem com um raio de sol. Mas nasceu com 90, já de sapatos e já de guarda-chuva”.
Nelson Rodrigues: neste século, o outro Rosa da nossa prosa. Quem mais?
A MENINA SEM ESTRELA, de Nelson Rodrihues, Editora Companhia das Letras, 279 pgs.
O Globo
26/12/1993