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Nelson Rodrigues: Origens e Originalidade de um Grande Prosador

Ao lidar com a palavra, o verbo em si, Nelson Rodrigues se transforma num dos grandes motores da cultura brasileira - um aparente primitivo altamente civilizado, um moralista além da imoralidade do moralismo convencional, um gozador fino que mistura o cômico com o trágico.

Sob alguns aspectos, Nelson Rodrigues foi o escritor mais original de nossa língua. Dispensa-se, aqui, falar em seu fabuloso teatro - teatro esse que também não tem igual em nosso retrospecto de dramaturgia. Mas, se no teatro, o prosador surgia ao fundo, ajudando a impelir um complexo de situações insólitas, no verbo em si, seja como narrador, crítico ou comentarista (tanto no universo escrito, como no oral), a sua obra significa uma das mais importantes coisificações da cultura brasileira - ou do que se entende por isso: aquele fazer, cujas raízes mais imediatas não remetem a matrizes provindas do exterior, nem mesmo aquelas de Portugal. Nesse sentido, poucos outros poderíamos citar: um Noel Rosa, um Volpi, um Pixinguinha, Drummond.
Um aparente primitivo altamente civilizado, onde a gozação constitui uma tônica, onde o humor respira e respinga por todos os lados e o cômico se funde com o trágico em forma de entrosamento que poucas técnicas de prosa escorreita, de dizer direto, conseguem efetivar. Foi sempre o dono da crônica, ao fazer, do gênero, um “algo mais” além da pieguice lírica ou do blablablá confessional ou autopromocional.
Note-se, em paralelo, que ele possui a desvantagem de não procurar a pureza do amoralismo. Ao contrário, as criações de Nelson Rodrigues levam quase à ideia da purgação de um moralista. E, por isso, ainda era um cristão; não invocava a abertura vivencial, intelectual, ética, do neopaganismo. Mas quando, em seu caso, falamos em moralista, referimo-nos a uma determinada espécie de formação inoculada de sentido dinâmico, ou seja, os velhos e tradicionais valores alimentados e recauchutados pela santa forma. Não se trata, assim, da imoralidade que caracteriza o moralismo convencional, burguês, comunista ou burocrata, que, por exemplo, gerou, em 1966, uma portaria do Ministério da Justiça proibindo o seu antológico romance, O Casamento.
Também existe em Nelson Rodrigues, ao contrário do que poderia insinuar a alguns, a característica do auto frio, analista - que, muitas vezes, está distante vivencialmente de seus entrechos e de seus personagens. Muitas das cenas delirantes de seu teatro e de suas narrativas nada têm a ver com a biografia do próprio autor. Nem sempre, nele, vida & arte se confundem: produz parábolas do que assiste ou soube a respeito do comportamento dos outros. Por isso, sustem o paradoxo de ser o cristão que estimula e até se deleita com o transe dionisíaco.
Estilísticamente, a sua prosa possui um ritmo, ora fluente, ora sincopado: aquela sabedoria de captar a coloração do coloquial e de, ao mesmo tempo, transfigurar funcionalmente os matizes da linguagem ambiente. O seu escrever dá a impressão de um escoar de imagens e conceitos, fluir e refluir que, inclusive, atravessa serenamente quase todos os obstáculos do mau-gosto, providos pelo próprio autor. E, dentro disso, atinge - no caso, pela intencionalidade intelectual - aquele denominado “mau-gosto genial” de algumas letras de nossos maiores compositores da música popular: um Sinhô, um Cândido das Neves “Índio”, um Uriel Lourival, um Vicente Celestino - até os próprios Noel e Orestes Barbora. Há vários exemplos hoje clássicos de expressões de Nelson, agora incorporadas em sua obra completa e até no falar comum, tal como “o óbvio ululante”, o “fauno de tapete”, “os marxistas de galinheiro” ou “a saúde de vaca premiada”. Não se trata, aqui, de elucubração simplesmente primitiva: traduz crítica e autocrítica; no primeiro caso, ao próprio mau-gosto; no segundo, como um refluxo semântico, que contamina intencionalmente o ataque ao convencional.
E o adjetivo? Talvez nenhum escritor brasileiro houvesse usado tão bem o adjetivo como ele. Não no sentido flaubertiano do mot juste. Mas, seja na distorção expressionista, seja nas tinturas exageradas e funcionais, ao descrever uma situação ou um personagem, localizar uma cena, com as vibrações do inesperado a cunhar qualquer tom, dramático ou cômico, patético ou ridículo.
Enfim o diálogo - o seu recurso máximo em eficácia: secura, loucura (?), finura. Diálogo que, em especial, invoca a grande força motora do sucesso em suas peças teatrais.

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Vamos assinalar as obras conhecidas de Nelson Rodrigues, no âmbito da prosa: os romances Meu Destino É Pecar e Minha Vida (publicados sob o pseudônimo de Susana Flag), Asfalto Selvagem, este último contendo a série de amores da Engraçadinha - Livro I - Seus Amores, Seus Pecados dos 12 aos 18 Anos, Livro II, Seus Amores, Seus Pecados (Depois dos 30); as séries de crônicas de A Vida Como Ela É, de À Sombra das Chuteiras Imortais; o romance, O Casamento; as crônicas de Memórias e, enfim, das Confissões.
As Confissões foram, em livro, subdivididas em três publicações: O Óbvio Ululante, A Cabra Vadia e O Reacionário. São a sua parte mais polêmica no sentido político. Foi aí que discutiu com mais afinco, em relação ao “padre de passeata”, “a estagiária de calcanhar sujo”, “o falso cretino” (que assim se fazia para poder conviver com as esquerdas) ou os “grevistas de araque”. Sem falar no Dr. Alceu (Alceu de Amoroso Lima ou Tristão de Athayde, com quem se reconciliou no fim da vida de ambos) ou D. Helder Câmara (que seria uma peça teatral. “O Arcebispo Vermelho”). Sobre D. Helder, resta aquela história engraçadíssima que forjou numa de suas crônicas: Jesus Cristo estava, maltrapilho, sentado num canto de esquina, quando passa D. Helder - Cristo pede-lhe uma esmola - D. Helder responde fulminante: “não tenho trocado”.
O Casamento - seu chocante romance (principalmente para a época), era 1966, onde mistura ridículo, tragédia, violência, incesto, etc., nasceu de uma encomenda de Carlos Lacerda. Na página 3, já vinha o aviso: Leitura para adultos. Como os tempos mudaram - e, com isso, a fatigada moral! Intuição e técnica, a primeira lapidada pela segunda. Porque Nelson, a seu modo, une a inspiração ao cérebro. Assim como sempre ocorreu no teatro, no Casamento as suas impressões sobre o mundo e o viver burguês são traduzidas, transformadas em transe. Funcionam o monólogo evocativo da memória e a fragmentação da cronologia do texto. E, como já repisamos, constitui um pêndulo instigantes, incessante, a oscilar entre o trágico e o cômico. Daí o grotesco do mau viver: pode algo ser trágico, se na superfície, na couraça de verbo e imagem, é cômico, burlesco, autodebochado no sentido dos personagens? O livro compõe-se de Alaches de várias narrativas, entremeados por alusões a fatos e personalidades da vida real, aliás os mais heterogêneos. Fala o autor, por exemplo, em Carlos Drummond de Andrade, de um jogo de futebol da época ou, novamente, de Raphael de Almeida Magalhães, como efígie de moeda.
A ação desse romance, do presente, para e retorna ao passado; volta e emite um salto. Os personagens exaram máximas como um La Rochefoucauld de subúrbio, de “galinheiro”. “O casamento já é indissolúvel na véspera”, “Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva”, “Se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém” e etc e etc.
Nelson, muitas vezes, mal descreve o tipo físico do personagem; mas as frases que lhes põe na boa já insinuam tudo. E a importância dos nomes! Os nomes da vida fictícia, em sua obra, demonstram um padrão de classe social, cultural, de estar na vida. Podem traduzir crítica, sátira, ou até benção. O leitor mais esperto sempre perceberá isso. Veja-se, ainda, em O Casamento (para não falar nas crônicas ou peças teatrais): o incorporador chama-se Sabino Uchoa Maranhão; sua filha é a Glorinha; Maria Eudóxia é a mulher de Sabino; o ginecologista denomina-se Dr. Camarinha; o pobre burocrata, casado com a leprosa, chama-se Xavier; dispensam-se os comentários.

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Embora nascido em Recife, em 23 de agosto de 1912, Nelson Rodrigues foi para o Rio de Janeiro aos cinco anos de idade e, daqui, nunca mais saiu (tinha horror a viagens). Começou a respirar a vida de jornalista desde os 13 anos de idade e, até por isso mesmo, tornou-se um dos mais cariocas entre os cariocas.
A nossa amizade pessoal, brotada fulminantemente por volta de fins de outubro de 1966 e motivada por um artigo que escrevi exatamente contra a proibição que o Governo impusera ao Casamento, só foi evidentemente enriquecedora. Aí foi mais fácil conhecer o homem, a peça. Era um libertário. Me lembro do episódio de um dia em que almoçávamos no Nino, logo depois do AI-5 (dezembro de 1968), onde, na mesa contígua, almoçavam o então todo poderoso general Albuquerque Lima e um conhecido arquiteto. Perto do fim do almoço, o arquiteto aproxima-se de Nelson e diz-lhe que o general fazia questão de conhecê-lo. Mal feitas as apresentações, Nelson, sem maiores preâmbulos, protesta contra o excesso de prisões, especialmente de intelectuais e artistas, nomeando expressamente o caso de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
O seu humor era rápido e rasteiro, quase sempre metafórico. Um dia, por exemplo, havia lido artigo da revista Diners (autor: Telmo Martino), elogiando sua obra. Perguntou-me quem é este kamikase? Respondi que era um amigo meu e, posteriormente, o apresentei. Noutra ocasião, almoçávamos eu, ele e o Marinheiro Sueco e, ao término dos trabalhos, este último convoca o maitre e diz: “eu pago tudo”, Nelson: “Onassis de tanga”. Outra vez estava em meu apartamento, numa reunião com diversas pessoas, e pediu-me para irmos até a vitrola e tocar ópera pra ele. Cumpri a missão e lá estávamos a ouvir Di Quella Pira - copo na mão, acerca-se Paulo Francis (na época os dois andavam rompidos por causa de teatro); ele olha em direção a Francis e fala: “que coisa linda! Paulo Francis, você gosta de ópera, não sabia”. Francis, rindo, confirmou. Pouco depois, numa de suas confissões, arrematava o fraterno episódio: “a arte dramática nos separou, a arte lírica nos uniu”.
Em suma, um ser humano também estóico. Enfrentou diversos conflitos e autênticas tragédias em sua vida pessoa e sempre conduziu-se com a maior serenidade. Do mesmo modo, sofria pelo Fluminense; mas sofria calado, só se emocionava com os momentos de alegria, do gol. Pois está aí um grande trágico na vida e na arte e que gostava mesmo de rir e sorrir.


Rápido, rasteiro, venenoso
(Uma lexicologia de expressões idiomáticas, frases e personagens da vida real ou imaginária - ou tudo em mescla)

Expressões
O óbvio ululante
O poente de folhinha
O falso cretino
O débil mental de babar na gravata
O marxista de galinheiro
Os brios das cerdas bravas do javali (Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas)
Os lorpas e pascácios
Os idiotas da objetividade
O banho de Paulina Bonapate
Fazia um mau tempo de 5º ato do Rigoleto
O fauno de tapete
A cabra vadia
A primeira audição do Danúbio Azul no baile da Ilha Fiscal
A baba elástica e bovina
A saúde de vaca premiada
A dispnéia pré-agrônica
Os arrancos triunfais de cachorro atropelado
O azarado que até consegue ser atropelado por uma carrocinha de Chica-Bom
A fosse do João Saldanha
O umbigo da odalisca
A mulher da capa de Manchete
O primeiro espartilho de Sarah Bernhardt
A pátria de calções e chuteiras
Na roda como um urso velho e bêbado
O irmão íntimo
O torpe realista
O brasileiro como dragão de Pedro Américo, esporas e penacho
Robinson Crusoé sem radinho de pilha
De olho rútilo e lábio trêmulo
A primeira batalha do Marne
A lagartixa profissional
A viúva machadiana
A vizinha gorda e patusca.
Sentado no meio fio chorando lágrima de esquicho.
O tubaraão de piscina
Abanando-se com a revista do rádio
O santo de vitral
A empada que matou o guarda

Gente
O padre de passeata
A feira de minissaia
A estagiária de calcanhar sujo
A grã-fina com suas narinas de cadáver.
O gravatinha
O sobrenatural do Almeida
Palhares, o canalha (que beijou a cunhada)
A doce carona (Marcelllo Soares de Moura)
O pintor de igrejas e grã-finas (Raul Brandão)
O perfil de senador romano (Francisco Pedro do Couto)
O marinheiro sueco (Hans Henningsen)
O perfil de efígie de moeda (Raphael de Almeida Magalhães)
O guarda-marinha morto no afundamento do Bismarck (José Lino Grünewald)
O anão de Velasquez (ele próprio, quando garoto)
O berro (Salim Simão)
A patada atômica (João Saldanha)
O possesso (Amarildo)
O João Sem Medo (João Saldanha)
O gênio dos suspensórios coloridos (Walter Clark)
A víbora que picou Cleópatra (José Maria Scassa)
O argonauta de cristal (Alfredo Machado)

Frases
Paisagem é verba
Toda unanimidade é burra
O caça-dotes é sempre mais humano
Se o gênio ganha a última batalha, não é mas gênio, é Deus
Invejo a burrice porque a burrice é eterna
Quero filé com fritas feita na hora
Só bebo água da bica
Nem Deus acaba com a burrice
A pior forma de solidão é ter um amigo paulista
O cinema não chega a ser uma arte - daqui a seis mil anos talvez o seja
Hollywood é o óbvio ulutante
O cinema francês é como o italiano: um conto do vigário - ambos são cinemas de moedeiros falsos
O cinema nacional dá pé quando desaparecer o Cinema Novo até o último vestígio
Marx e Brecht são responsáveis pela cretinização de toda uma geração de cinema e teatro
Meu teatro tem algo de cinematográfico: ações simultâneas, tempos diversos.
Uma das provas de minha vitalidade é não ser eu um autor oficial.
O sujeito que não se considera um gênio não se deve dedicar a fazer arte ou literatura.
A plateia é respeitosa quando não está entendendo nada
É preciso restaurar o mau-gosto no cinema
“Envelheçam” (conselho aos jovens)
Toda mulher gosta de apanhar; menos a neurótica
A solução para o problema da nostalgia sexual que persegue a todos nós é a castidade
Nada mais doce, nada mais terno, do que um ex-inimigo
Sexo é para operário
Amar é dar razão a quem não tem
As grandes convivências estão a um milímetro do tédio
A tortura é a coisa mais hedionda da Terra
O palavrão está corrompido pelas mulheres
Devoto à direita o mesmo horror que tenho pela esquerda
O sábado é uma ilusão
Viajar é também uma forma de solidão
Só os profetas enxergam o óbvio

Jornal Demo
01/09/1987

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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