Talvez pudesse parecer blague, mas não é: o maior poema de Rimbaud foi o seu emudecimento, a sua renúncia a poesia, antes de completar vinte anos. Não se diz isto como uma negação de sua obra. Pelo contrário, logo depois de Mallarmé, talvez seja ele o maior poeta da língua francesa.
Mas a sua renúncia inaugurou muitas coisas (e, como se sabe, o poeta inaugura). E ela pesa porque se trata de silêncio adotado por um grande escritor.
O emudecimento poético e a partida para a aventura vivencial, de modo integral, procuraram dizer que vida e arte nada têm em comum diretamente. É uma resposta à chamada poesia participante, um dos grandes abrigos até hoje inventados para a falta de talento. A arte, qualquer forma de criação válida, pode parecer engajada, porém com a condição de o engajamento básico ser aquele com o instrumento de trabalho. E este último, ou se tem, ou não se tem.
Rimbaud, um dos grandes fenômenos de talento prematuro - escreveu toda a sua obra fabulosa até os 19 anos - talvez tenha, até por isso mesmo, pressentido bem cedo uma impotência que impedia a criação total: a inauguração radical do fazer (poiesis). Talvez seja sintomático que, como última alternativa de achar horizontes, antes de trocar a torre de marfim por uma vida de emoção concreta, de viagens sucessivas, haja estudado bastante, em 1875, várias línguas, como o castelhano, o árabe, o grego, o holandês, o italiano. Pode ser que a virada para o desconhecido fosse mera consequência de inquietação, angústia financeira ou o escândalo da vida homossexual com Verlaine.
Mas o contraste ficou claro - quem, deveras, atuou estruturalmente sobre a linguagem foi Mallarmé, aquele que se entronizou na mencionada torre de marfim.
A viagem de Rimbaud constitui resposta ao satanismo do também aventureiro Lord Byron, às viagens artificiais e amorais (o vício é a virtude) de Baudelaire. Pois se trata de uma viagem menos aristocrática e mais radical - poeticamente mais profunda. Ruptura com a cultura.
Essa fixação na viagem já vinha presente em sua obra. O exemplo mais repisado é o do Bateau Ivre, do qual, entre nós, existe uma tradução e um esforço de interpretação feitos há muitos anos por Augusto Meyer. Ficou, inclusive, este poema como um signo - o signo daquela poesia ébria levada às últimas consequências, justificando a invenção do automatismo psíquico; e, por isso mesmo, para os surrealistas, foi o gênio de Charleville um dos precursores mais endeusados.
Logo depois, haveria o poeta de compor o não menos famoso soneto das vogais - em perfeita consonância com as corréspondances de Baudelaire - onde arbitrando cores e visualizando efeitos para cada uma das vogais haveria de consumar um dos breviários da estética simbolista. Parece que estava, então, plenamente conciliado com sua arte.
Já um ano depois, Alquimia do Verbo, inserto em seu último livro, Uma temporada no Inferno, colocava tudo isso no passado. Repetia com as alterações no texto, em decorrência da nova perspectiva, os versos de outro de seus grandes poemas: “ô saisons, ô chateaux!/quelle âme est sans défauts?” No fim, comentava numa linha: “Isto passou - hoje, eu sei saudar a beleza.”
Mas aqueles dois primeiros versos, acima transcritos, ficam de qualquer maneira, como uma pedra de toque antológico, contrastando, até então, com o resto da poesia de Rimbaud (a magia, o insólito, o encantatório). Inserem-se, sim, entre as demonstrações da grande poesia contemplativa, ao nível de um Holderlin.
Apenas algumas afinidades com outro poema admirável, L’Éternité: “elle est retrouvée/quoi? - L’Éternité/c’est la mer allée/avec le soleil.”
“Par délicatesse/ J’ai perdu ma vie.” Essa passagem da Chanson de la Plus Haute Tour evidenciaria, no futuro, uma das funções do poeta em geral: criar moedas correntes para a fala, atuando sobre o léxico. Hoje, pelo menos, ainda atua como um lamento de salão, pronunciado na língua original. Ficou subentendido ad aternitatem o provérvio, a máxima, o aforisma, o mandamento.
Mas não foi. “por delicadeza” (fraqueza, em certo sentido) que perdeu (abandonou) a poesia? Não, porque precocemente, no papel, já havia ganho. Tanto assim que se tornou mais do que uma larga influência, virou mito (e há ainda mais papel do que ele gastou destinado a dissecar o “mito Rimbaud”).
A sua vida, sim, quis transformar numa grande poesia. Talvez porque a radicalidade no fin du siècle, do simbolismo (o poema acima de tudo, como música) lhe houvesse conferido a impressão de que a poesia escrita iria acabar - o ato de dizer, provavelmente, reduzido à manifestação secundária.
Tal como a teoria da elipse de que falava o linguista Sanctius, a ausência pode, muitas vezes, significar muito, significar grandeza. Ou melhor, uma determinada forma de presença inaugural. Voltamos outra vez a Mallarmé: seus grandes temas eram o nada, o vazio, o acaso, a folha em branco.
Muito já compreenderam isto. Parece que não deveria haver tanto mistério em torno de Jean-Nicolas-Arthur.
Correio da Manhã
29/10/1972