Contar uma história ou narrar um fato ou legenda mítica. Antes da invenção da imprensa, a escrita era puro artesanato, fazer inscrições possuía ritmo de ritual. Então, em sua grande parte, o conhecimento era remédio contra a ignorância, ministrado por via oral. Victor Hugo, em dado momento de Notre Dame de Paris, interrompe a narrativa a fim de fazer um ensaio especulativo e impressionista a respeito das transformações na arquitetura provocadas por Gutenberg.
Se fizesse em torno daquilo que fazia, no ensejo - o romance, ou, até, a prosa em si, veria que as alterações ainda foram, provavelmente, mais avassaladoras. Primeiramente, as duas grandes oposições convencionais - realidade e ficção - não encontravam o seu entrosamento dialético. Os caminhos e o desenvolvimento de ambas as tendências mantinham-se discerníveis com nitidez de claro e escuro. O relato cingia-se ao fato - depois a maior soma de informações permitia o ensaio ou comentário, isto é, o julgamento subjetivo. Com a evolução da imprensa, o caráter documental em que se poderia apoiar o relato ou ensaio, passou a sair paulatinamente da escassez ou precariedade e ganhava maior riqueza e perenidade. Isto viria a atingir um ponto culminante, no início desde século, com a era da reprodução em massa, com os meios eletrônicos superando os mecânicos. De outro lado, a ficção vinculava-se de imediato, não ao fato, mas à imaginação. Esta última se estendia em fugas ou à procura do fantástico - exigia invenção, contraposta à documentação.
O racionalismo e o século das luzes começaram a abrir uma maior consciência da linguagem. Não só a preocupação com o objeto do relato ou da imaginação, porém o como transmitir informações ou efeitos verbais. O avanço documental era grande - livro, jornal, revista, já objetos usuais. A maior precisão do documento convidava ao esforço de limitar a imaginação - a anedota poderia se vincular mais a certos fatos, episódios, de costumes ou ambientais, enquanto o método de escrever se apurava. Era o realismo e, depois, organizar os recursos da prosa como uma sinfonia entre elementos de continente e conteúdo: Flaubert. Mas o desenvolvimento material permanecia incessante, galopante. De um lado a tecnologia e novos meios de expressão, mais envolventes, de outro, o aparecimento de novas ciências (psicologia, sociologia, etc.) fez balançar o aparelho dos prosadores. O Século XX assistiu ao espoucar de experimentações em todos os matizes (Joyce, Kafka, Proust, Faulkner, Dos Passos ou, no Brasil, Oswald e Mário de Andrade, Guimarães Rosa) até que se chegou a aventar a possibilidade de morte do romance ou até da prosa, em si, como veículo de lances estéticos.
A perplexidade não impede que continue a bolsa de best-sellers, mas deixa em xeque o crivo da perenidade: escrever para quê, quem, durante quanto tempo viverá a obra? As próprias descobertas científicas, já ao nível extraterreno, materializaram a proximidade do fantástico. A consciência da linguagem puramente especulativa ameaça tornar-se uma ficção.
Correio da Manhã
11/11/1970