Ezra Pound, há alguns dias, em Veneza, segundo as notícias, viu passar o seu 85º aniversário. Fiel a si mesmo, às suas idéias de criação, como uma árvore, dando a mesma impressão – “a tree of a man” – tida por aqueles estudiosos de jazz, que, há cêrca de 20 anos, foram procurar o velho Bunk Johnson e arranjaram-lhe uma dentadura a fim de que pudesse gravar o seu sôpro insuperável do cornet.
Pound: uma vida inteira voltada para a arte, a poesia em especial, mas envidando participar de tudo, da música à política, sem se omitir em nada. Por isso, até há pouco, pelo menos, prosseguia a redigir esboços de novos Cantares – a obra interminável de artista, que, na técnica moderna da montagem de segmentos de versos, procurou ressucitar o fôlego de Dante ou de Homero no século atual.
O homem que influenciou e empresou o desenvolvimento da obra de escritores tão importantes, como Joyce, Eliot ou Hemingway. Que criou várias teorias poéticas, o movimento imagista, polemizou intensamente e foi o maior crítico pragmático de poesia também dêste século; vide o seu ABC of Reading, há pouco lançado em português pela Editôra Cultrix. Os seus lances culturais de insuperável tradutor de poesia, de várias linguas: do chinês, do japonês, do latim, do provençal, do grego, do francês, do alemão, chegando o seu interêsse até a poesia em língua portuguêsa, desde o seu antigo ensaio sôbre Camões (“O Rubens do verso”), publicada no volume The Spirit of Romance. Enfim que, por exemplo, devolveu, redescobertos, às suas línguas, Guido Cavalcanti, na Itália, ou Laforgue e Corbière, na França.
Não seria apenas um paradoxo constatar que, talvez, êle, à direita, e Maiakóvski, à esquerda, sejam os maiores poetas do século. Ambos no entanto, vítimas dos sistemas onde viviam. O chamado “fascismo” de Pound tem de ser compreendido como desvio utópico de um homem que combateu a dinheirocracia (“with usura hath no man a house of good stone”), emaranhou-se em doutrinas econômicas “out of key with his time”, para citar o próprio autor, e sonhava com a sociedade do lazer, onde o artista e o escritor teriam só tempo para criar e ditar uma estética. Também o paradoxo dos extremos que se tocam – que o levou a Mussolini, ao campo de concentração em Pisa e ao hospício, dado como louco para não ser condenado, e levou Maiakóvski à luta contra a burocracia soviética e ao suicídio – evidencia que a obra responde, perante o tempo, por criatura e criador. Não se pode demití-lo da história por causa de tendências políticas, como se tenta com John dos Passos, cujo reverte ideológico (possivelmente impulsionado por muita desilusão) jamais apagará o fato de ter sido um dos mais importantes romancistas norte-americanos.
Há pouco, Ezra Poun ainda recitava para o público, em Rapallo, ao lado, entre outros, de Lawrence Ferlingheti, um dos líderes da beat generation. Resistência a “plenos pulmões” (Maiakóvski). Agora, uma árvore, um monumento vivo.
Correio da Manhã
06/11/1970