Nesse ano, em que já se começa a celebrar cem anos da morte de Alexandre Dumas, Pai, não custa reiterar sobre a evidência a fim de voltar a chamar a atenção sobre aquele que é um dos maiores prosadores da literatura. Também evidentemente ele jamais se dirigiu ao pensamento profundo, à intelectualização do verbo, mas vinculou-se - e talvez melhor do que ninguém - ao deleite de narrador na trilha da extensão emocional.
Dentro disso, talvez não haja melhor exemplo do que ele, daquilo que se possa compreender como prosa pura, ou seja, a transparência do texto. Sem, nisso, exigir ilação de qualquer graduação de valor ou mérito, pode-se distinguir a prosa pura da impura (Guimarães Rosa, Joyce, Faulkner etc.) no tocante à maior ou menor proximidade do estado poético. O estado poético consiste na iminência imediata, concreta, da palavra em si -"a poesia não é feita com idéias e, sim, com palavras", disse Mallarmé. Assim, diante do texto poético ou parapoético, o leitor não se condiciona simplesmente à ambiência do índex semântico, mas, precipuamente ao ritmo de efeitos também sonoros e imagéticos das palavras em relação. Já na prosa pura, o que ocorre é exatamente o total predomínio semântico, sem o freio de outros fatores estéticos do mundo verbal, ou seja, o contador aciona incessantemente a imaginação do leitor naquilo que transparece do universo referencial da palavra. São os livros que se "devora".
Dumas foi o rei do folhetim, porém um folhetim mais elaborado, rico, do que aqueles de outros experts, como Féval, Zevaco, Ponson du Terrail. Sabia como poucos enredar a trama de acontecimentos, conferir um dinamismo raro de encanto e fantasia ao romance histórico - o capa-e-espada. Por isso mesmo, até hoje, em idiomas e idiomas, são consumidas com prazer as suas obras principais: Memórias de um Médico, o mais longo e espetacular de todos, abrangendo a era da decadência da realeza e da Revolução Francesa; Os Três Mosqueteiros, à época de Richelieu, Luiz XIII, da revolução de Cromwell e de parte do reinado de Luiz XIV; O Conde de Monte Cristo, o menos próximo dos fatos históricos em si mesmos, desenrolado no século XIX, a partir da fase final da carreira de Bonaparte; enfim, a série das lutas religiosas na França, A Rainha Margot, A Dama de Monsoreau e Os Quarenta e Cinco. O próprio cinema encara essas obras como um manancial inesgotável de produções.
Notar também que, no fabuloso Memórias de um Médico com mais cunho estrutural, já estava presente a dialética documentário-ficção, tão influente no cinema e romance modernos. Dumas inseria, em montagem com os lances dramáticos, por exemplo, o inteiro teor da Declaração dos Direitos do Homem, uma biografia e dados sobre antepassados de Mirabeau, transcrições de trechos de relatos históricos.
Alexandre Dumas: a ficção é muito mais forte do que a realidade
Correio da Manhã
11/12/1970