Ao Vivo do Calvário
Autor: Gore Vidal
Idéia: Mais um romance polêmico do autor, no qual ele passeia pela trilha do calvário de um Cristo submetido aos impactos da mídia eletrônica.
Gora Vidal está se transformando num dos monstros sagrados da literatura ou, pelo menos, no fita-azul dos iconoclastas. Vem daqui, vai dali, mantém permanentemente suas lanças ou aríetes do deboche devidamente assestados a fim de sacudir o marasmo e assustar o bien-pensants. Hoje, as lentes ou lunetas do bom senso estão delineando os contornos definitivos: a personagem-matriz da obra de Gore Vidal é Gore Vidal. Elementar, meu caro leitor: épater é a palavra de ordem.
Ao Vivo do Calvário (Live from Golgotha) – com o subtítulo O Evangelho segundo Gore Vidal –, tendo a bela capa reproduzindo Cristo, em detalhe do rosto, da Pietà, do grande Cranach, não surpreenderá os leitores experimentados do autor. O inesperado, como de praxe, já era esperado. Surpresas? Sim. Mas a informação estética também delas, não prescinde.
Mas o americano Vidal não é apenas o romancista, maestro do relato, em que situações insólitas são forjadas. Desliza, em paralelo, na faixa poética. Ou seja, aquela hoje já bem conhecida norma de Mallarmé de que a poesia não é feita com idéias, mas, sim, com palavras. Logo à página 11 está a demonstração:
Como as sobrancelhas de Santa se juntam numa linha reta quando ele franze a testa, uma sobrancelha escura e peluda parece estar trepando com a outra como se fossem um casal de lagartas negras.
Os discípulos de Flaubert, do mot juste (da palavra exata), não fariam isso; no entanto, poderiam tirar o chapéu...
Apenas com uma breve dose de audácia, pode-se definir esse livro como uma espécie de paródia herética. Até aí, nada assustador – o que se entende por “heresia”, depois da Segunda Revolução Industrial, já nem assusta os próprios católicos praticantes. “O meio é a mensagem.” O.K. Se, por exemplo, Gore Vidal viesse a afirmar que a ceia de Cristo foi um vasto porre não tiraria o sono do frei Leonardo Boff.
Nesse romance, mais uma vez presente/passado/futuro surgem mesclados na narrativa em tom de sátira e de alegoria. O escritor tem o seu savoir-faire, salta entre as próprias linhas, reaparece, maneja e redimensiona as personagens hipoteticamente históricas (?), deleita-se (nos) com o erotismo as vezes semipornô. Enfim, aí está o entrecho, em linhas gerais: uma equipe de tevê desembarca no passado a fim de transmitir o calvário ao vivo. Enquanto isso, Timóteo, na primeira pessoa, tenta escrever seu evangelho. Mas há o vilão, o Pirata da eletrônica, “o marginal cibernético”.
Dispensável tentar extrair mensagens claras do texto. Melhor o deleite com flashes de fanopéia, poética das imagens:
A delicadeza exótica de um mar perolado que vai se espraiando até virar uma frágil lâmina de nácar pela costa rasa – uma iridescência violeta, azul e verde – umas poucas gaivotas.
É isso aí.
Revista IstoÉ
20/11/1993