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A magia de Shakespeare, para além do tempo

As obras completas do maior poew dos tempos modernos voltam ao mercado, para reforçar a aura de mistério que ainda envolve a vida e os textos de William Shakespeare.

O que mais dizer sobre Shakespeare? De fato, basta rememorar algumas de suas personagens (personagens fortíssimas, de marca indelével), para perceber que eles permanecem extremamente atuais, adaptáveis a inúmeros padrões de comportamento. Não chegariam a permanecer como mitos, mas sem dúvida são arquétipos. E, com o decorrer do tempo, nos respectivos dramas, firmam-se como protótipos.
A listagem não é das mais trabalhosas. Lá (ou aqui entre nós) estão lago, MacBeth, Hamlet, Lear, Ricardo III e - nessa era da chamada permissividade - Otelo. No naipe das personagens, relativamente mais frágil, estão Julieta, Catherine, Lady MacBeth, Desdêmona, Ofélia, Cleópatra etc. São elementos e mais elementos de todo um universo a querer demonstrar que o engenho e a arte de Shakespeare atravessam os tempos no meio do maremoto de exegeses, quando não somente especialistas em teatro e literatura se manifestam, mas também filósofos, psicólogos, historiadores e até estudiosos em ciências ocultas.
Nesse último caso, vale citar
An Encyclopedic Outline of Masonic, Hermetic, Qabbalistic and Rosicrucian Symbolical Philosophy, de Manly Hall (São Francisco, 1928), em que, através de uma transparência, se faz uma superimpressão dos rostos de Sir Francis Bancon e William Shakespeare, e oretrato deste é justamente o mais conhecido e o mesmo que abre todos os três volumes de suas Obras Completas.
Os rostos são, de fato, bem semelhantes e, além de inspirarem um famoso poema de Ben Jonson, permanecem sendo um dos inúmeros aspectos do mistério que ainda recobre a existência de Shakespeare.
Mistério que, de certa forma, cintila também no poema hermético e metafísico "The Phoenix and the Turtle", que encerra o último dos três volumes recém-lançados. "A Fênix e a Pomba" (preferimos traduzir
turtle - que é a turtle-dove - por pomba ao invés de rola, como vem nessa edição, ainda que, mutatis mutandis, se trate evidentemente da pomba-rola).
Feita a ressalva, o que interessa comentar é que esse poema nos revela um Shakespeare no auge de seu poder criativo. Foi publicado pela primeira vez na antologia de Robert Chester, Loves Martyr, em 160 I, e muitos colocaram em dúvida sua autoria.
É, de fato, uma exceção dentro da obra shakesperiana, em que, com um só texto, ele surge como o "metafísico dos metafísicas", com peripécias verbais que somente com John Donne, em seus melhores momentos, poderia também realizar. E, sob o prisma do hermetismo (pelo qual quase todos os assim chamados poetas metafísicas foram julgados), mais ainda leva a palma. Vários ensaísta mergulharam em seus meandros: Emerson, I. A. Richards, Alfred Alvarez.
Um jogo verbal de contrastes e oposições que se anulam no campo semântico, até mesmo com violentação gramatical. A lenda da fênix corresponde meramente ao caráter alegórico do significado total, uma espécie de
overture ao pensamento que vai embrenhar-se nas mais complexas especulações. E chega-se à perspectiva paradoxalmente antimetafísica, com a negação do absoluto. Mas a união líquida a lógica dos números. Exemplo:

So they loved, as love in twain / Had the essence but in one; / Two distincts. division none; / Number there in love was slain. 

(Tanto se amavam que, duas sendo / No amor, só uma eram na essência; / Distintas. Mas indivisíveis; / Nelas o amor matava o número. [tradução constante da edição ora comentada].)

Basta passar os olhos por todo o texto de
A Fénix e a Pomba para comprovar sua extrema modernidade. Modernidade essa que, mesmo com vários séculos de diferença. chega a ultrapassar a da maioria dos poetas simbolistas, com exceção de Mallarmé, revelando muito da genialidade inigualável de Shakespeare.


Interpretações
Palavras, palavras, palavras


Verdadeiro monumento da poesia lírica é a série de 154 sonetos que Shakespeare publicou em 1609 e que suas obras completas reproduzem. Existe, em torno deles também, um mar de interpretações, pois ressurge o hermetismo (não tão intenso) sustentado por elementos barrocos.
Oscar Mendes, em sua nota introdutória, faz breve análise, observando que, quanto à forma de versificação, os sonetos estão sempre constituídos de três quartetos com as rimas cruzadas e um dístico final de rima parelha - o último, característica do soneto em língua inglesa. Tudo isso, no entanto, cede ao que é mais importante: o ritmo e a intensidade da obra.
Oscar Mendes, ao mesmo tempo e como tradutor, também explica a necessidade de transpor os versos do original para o alexandrino clássico em português. Trata-se da maior amplitude, a fim de evitar o sacrifício de conceitos, e elisão da imagens. Isso geralmente ocorre na tradução de decassílabos de outros poetas da língua inglesa. E a sua opção pelo verso branco, abandonando a rima, seguiu idênticos critérios.
É preciso notar, nos sonetos, o de número 99, que tem uma linha a mais e não rima ("ln my love's viens thou hast too grossly dyed" - "Foi das veias do amado extraída sem pejo" - tradução de OM), e os de números 135 e 136 e no desfecho do de número 143, em que o autor, num sistema de repetição, joga com a palavra will, que significa, ao mesmo tempo, desejo e o diminutivo de seu nome, William, detalhe descuidado pelo tradutor. O que realmente interessa, no entanto, é notar que o grande escritor, muitas vezes, se torna o grande fazedor de frases e forja conceitos que atravessam os tempos. Nisso, Shakespeare foi modelar. Alguns exemplos:

Theres beggery in the love that can be reckon'd. [Muito miserável é o amor que possa ser medido.- Antônio e Cleópatra.]
Just death, kind umpire of men's miseries. [A morte, árbitro afável das misérias humanas.- Henrique VI. 1ª parte.]
To be or not to be: that’s the question. [Ser ou não ser: eis a questão.- Hamlet.]
Words, words, words. [Palavras, palavras. palavras.- Hamlet.]

How long a time lies in one little word! / Four lagging winters and four wanton springs / End in a word: such is the breath of kings. [Quanto um tempo se estende numa palavra breve! / Quatro longos invernos e quatro pródigas primaveras / Findam numa palavra: tal o respirar dos reis.- Ricardo II.]
Life... is a tale / told by an idiot, full of sound and fury / signifying nothing. [A vida... é uma história / contada por um tolo, cheia de som e fúria / significando nada. - MacBeth.]


Assim, Shakespeare fez também a história - mesmo porque não pode haver História sem ele. Melhor, portanto, encerrarmos com outra frase; esta de T. S. Eliot: "Sobre a hipótese de alguém tão grande como Shakespeare, é provável que nunca possamos estar certos; é melhor que, de tempos em tempos, mudássemos nosso modo de estar errados".

O Estado de São Paulo
10/03/1990

 
G. S. Fraser "The modern writer and his world" - Criterion Books
Jornal do Brasil 18/08/1957

Sophokles – “Women of trachis”
Jornal do Brasil 03/11/1957

Piet Mondrian
Jornal do Brasil 01/12/1957

The Letters Of James Joyce
Jornal do Brasil 12/01/1958

O poema em foco – V / Ezra Pound: Lamento do Guarda da Fronteira
Correio da Manhã 05/10/1958

Erza Pound, crítico
Correio da Manhã 11/04/1959

Uma nova estrutura
Correio da Manhã 31/10/1959

"Revista do Livro", nº 16, Ano IV, dezembro de 1959
Tribuna da Imprensa 13/02/1960

E. E. Cwnmings em Português
Tribuna da Imprensa 04/06/1960

O último livro de Cabral: “Quaderna”
Tribuna da Imprensa 06/08/1960

Cinema e Literatura
Correio da Manhã 07/10/1961

Um poeta esquecido
Correio da Manhã 24/03/1962

A Grande Tradição Metafísica
Correio da Manhã 05/05/1962

Reta, direto e concreto
Correio da Manhã 06/06/1962

A Questão Participante
Correio da Manhã 18/08/1962

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