O autor de "Lance de Dados", morto há cem anos, trouxe para os versos o radicalismo estrutural e racional de que precisavam para renovar-se:
O horrível espasmo da asfixia sentido há pouco pode repelir-se no decorrer da noite e me liquidar. Assim, não se surpreenderão como eu penso napilha semi-secular de minhas anotações, que só irão transformar-se para vocês num grande transtorno, pois sequer uma folha pode ser útil. Eu mesmo – o único a poder extrair dali o que existe... Teria-o feito, se os anos restantes não me houvessem traído. Por isso, queimem: nela, não há herança literária, minhas queridas. Nem submetam à opinião de quem quer que seja: ou recusem qualquer ingerência curiosa ou amiga. Digam que nada ali existe para ser levado em consideração - o que é verdade - e vocês, prostradas pelo sofrimento, são as únicas pessoas no mundo capazes de respeitar a esse ponto toda uma vida sincera de artista- acreditem na beleza que deveria existir em tudo isso. Assim, deixo apenas um papel inédito, com exceção de alguns fragmentos impressos que vocês vão encontrar, além do "Lance de Dados" e "Herodíade", possivelmente terminada.
O bilhete acima, deixado pelo poeta para sua mulher (Maria Christina) e sua filha (Genoveva), é um documento contundente. Para felicidade geral da inteligência, da criação, da imaginação, não foi obedecido in totum. Não fosse assim, e seu genro, Edmond Bonniot, não teria revelado "lgitur"esse luminar monumento ao santo hermetismo, que, até hoje, implica e desafia exegeses e que acabou sendo publicado, em 1925, pela NRF. E, depois- sem nem tanta importância- os esboços/fragmentos do Livro, via Jacques Scherer, ou do "Por um Túmulo de Anatole", com a introdução de Jean-Pierre Richard. Além de outros inéditos. Mallarmé foi um mundo. Tal como o terceto anterior que, com ele, formam os quarto pontos cardeais da trajetória transcendente do que se entende por Poesia: Homero, Dante e Shakespeare. Era o introspectivo, passivo, tímido, gozador ... Não deu uma de Rimbaud, aos 17 anos (época do glorioso "O Barco Bêbado") ainda fazia poemas de liceu. Mas, logo depois, já dava um salto com o "Castelo da Esperança", "A um Poeta Imoral", "Contra um Poeta Parisiense ou Mysticis umbraculis". Já se denotava salutary amoralismo e um humor laforguiano.
Do longo período entre o eterno calvário de professor até as famosas reuniões na rue de Rome, onde pastoreava seus discípulos, conseguiu, apesar das dificuldades financeiras, existenciais e (oh!) familiares, deixar uma obra que já era iluminante, luminar, luminosa, para as estáticas letras francesas (mal sabiam que, após o santo Baudelaire, ainda chegaria a dupla Verlaine-Rimbaud- aí o circo do lugar-comum pegaria fogo). Pois, além de poemas que haviam abalado debeleza insólita o establishment da época - como "O Azul", "O Fauno", "Herodiáde", "O Cisne", "Os Leques" e "Os Túmulos"- rompeu de vez com os diques das convenções e deixou os jovens Paul Valéry e André Gide embasbacados, ao lerem a jogada no infinito, o "Lance de Dados": novos elementos para o poema; a subdivisão da sintaxe, a variação tipográfica, o manuseio de páginas (monagem – depois Eisenstein), o prisma de idéias.
"Um Lance de Dados" ("Un coup de dés") aponta para o início da verdadeira poesia modema (e não o vers libre tão aqui rapidamente captado), com o seu radicalismo racional/estrutural. Jamais os ismos do início do século atual (dadaísmo, futurismo, letrismo, sonorismo, ultraísmo etc. etc.; o surrealismo foi uma alternativa mais consistente e profunda porque lidava com problemas de sintaxe e subconsciente) corresponderam à mensagem do gênio de Valvins. Somente na década de 1950, aqui no Brasil, a poesia concreta retornaria a sua proposta básica, pois os fatores gráficos, espaciais, onomatopaicos etc. não traduzem enfeites de superfície ou modismos destinados tão-somente a épater, mas, sim, contingências de uma nova era. É bom lembrar, para efeito de entendimento, a distinção que Susanne Langer, em Uma Introdução à Lógica Simbólica, fez entre material e elemento: o material é real, o elemento é virtual, ou seja, para dar os tons concretos, a tinta na lata é material, a cor na tela é um elemento.
Dois dados curiosos, entre outros, em torno de Mallarmé e sua obra são as manifestações de John H. logram e Adrien Renacle. O primeiro, em seu livro A Filosofia da Caligrafia, ressalta aquela do poeta, dizendo que ela haveria de obter certamente um primeiro prêmio. O segundo, um dos franceses mais protéicos e bizarros de seu tempo - entre outras atividades, jornalista, romancista, músico, teatrólogo, coreógrafo e autonomeado inventor do avião monoplano e biplano - definia Marllarmé como "o homem raro que só fala coisas novas".
Mallarmé foi rigorosíssimo no publicar o seu fazer. O grosso do que se vê/lê hoje em dia de seu trabalho são coisas sem destino específico: além de "Igitur" e dos outros inéditos da área criação/especulação, surgem cinco volumes de importante correspondência (Henri Mondar e Lloyd James Austin), centenas de versos (muitos maravilhosos) de circunstância e mais escritos, e versos e traduções. Outro dado importante: ele acabou com a pontuação em seus poemas (Apollinaire e outros saíram correndo atrás). E o simbolismo? Depois de lançados os dados, tente alguém indagar o que ele tinha com isso, com escolas ou escolásticas.
Jornal da Tarde
05/09/1998