De Gongora a Lorca, pode-se traçar uma reta di reta: "beleza objetiva, beleza pura, livre dos anseios do pânico" - é o que prega o último em seu ensaio famoso a respeito da obra do primeiro. Lorca: isomorfismo entre sentimento e instrumento, fundo e forma, vida e arte. Vivência e consciência. Pujança de melopéia, riqueza de fanopéia, com o arrojo das formulações insólitas com esses elementos. E a linhagem do barroco não deixa de contribuir para a sua poética, que, por outro lado, elide qualquer apego ao desvario romântico. Em seus poemas, nada existe de implícito, no tema, que a forma não explique. O cunho surrealista de uma imagética peculiar, contida pela tendência racionalizada da organização. E, isso, conduz a uma índole tátil dos sentidos, à "emoção coisificada", típica também de um John Donne ou do nosso João Cabral de Melo Neto. Opção por uma técnica de nomeações de coisas, objetos e substantivos concretos a fim de exprimir sentimentos normalmente rotulados num critério de abstração. Exemplos:
Azul onde a nudez do vento vai quebrando / os camelos sonâmbulos das nuvens vazias.
E um horizonte de cães / ladra bem longe do rio.
Silêncios de goma escura / e medos de fina areia.
O vento dobra despido / a esquina da surpresa.
Ninguém sabia que martirizavas / um colibri de amor entre teus dentes.
Teu ventre é uma luta de raízes.
A verde lepra do ruído.
Meu beijo era uma romã / Abena e profunda. / Tua boca era rosa / de papel. / O fundo. um campo de neve.
Ao lado, no entanto, do Lorca dos gitanos e toureiros, o Lorca dos sonetos, das casidas e das gacelas, temos a outra face, com um tipo de produção poética peculiar, talvez menos brilhante nos efeitos metafóricos, menos efusivo na dicção, porém de grande consubstanciação inventiva. É o Lorca do poema-pílula, da síntese, da peça-minuto, com recursos instigantes de pontuação e de enjambement, e usando o apelo às variações tipográficas e, também, à técnica de repetição; a pseudo-redundância que emite o peso funcional das palavras. São pelas forjadas sem concentração cronológica, sem atender ao imperativo da linearidade da sintaxe discursiva, e, como os orientais, aproximando-se da estrutura analógica. Montagem, associação de imagens, por simples justaposição. Talvez o melhor exemplo disso seja o poema "Remansos", abaixo transcrito:
Ciprestes. / (Água estagnada) / Choupo. / (Água cristalina) / Vime. /
(Água profunda) / Coração. / (Água de pupila)
Aqui, ele foi longe, dentro de uma visão da vanguarda poética, que implica a abolição do caráter discursivo. Há uma disposição racionalizada no espaço- uma ordenação ideográfica de quatro palavras (substantivos), cada uma delas contendo, logo abaixo, a palavra água (também substantiva) qualificada por um adjetivo, a não ser na quarta e última nomeação, na qual o adjetivo qualificativo cede lugar a uma referência possessiva - de pupila; aliás, exatamente de acordo com a denotação animal da palavra coração. O referente vegetal está presente nos três primeiros substantivos - ciprestes, choupo e vime - que trazem a agregação de uma idéia mineral, variável pela qualificação dos adjetivos. No último caso, água vem subordinada à sua matriz possessiva, pupila, e perde a condição de agente de designação mineral, em favor da referência animal, em consonância com coração. Esse quarto binômio designativo, açambarcando o complexo animal, diferenciando-se os três anteriores, não constitui apenas um "arremate" conceitual ao mini poema; polariza semanticamente os outros três núcleos, inclusive na relação olho x imagem.
Por seu turno, o poema "Arlequim", pela sua concentração imagista, aliada à concisão, lembra em muito o haicai japonês. Imagens em justaposição, elidindo também a utilização do verbo:
Teta lacre do sol. / Teta azul da lua. / Torso metade coral / meio prata e
penumbra.
"Crótalo" traz a repetição da palavra título por três vezes, camada sonora a forjar efeitos de onomatopéia com o significado da mesma palavra. É uma das melhores trouvailles de Lorca neste tipo de experiência:
Crótalo. / Crótalo. / Crótalo. / Escaravelho sonoro. / Na aranha / da mão / riscas o ar / cálido / e te afogas em teu trino / de pau. / Crótalo. / Crótalo. / Crótalo. / Escaravelho sonoro.
Outro poema, como "A Cruz", dá bem a idéia de um recurso de transferência de sentido por intermédio de uma visualização estática que se transforma num quadro em movimento-o que era fim tomou-se infinito no ato de a cruz mirar-se no açude:
A cruz. / (Ponto final / do caminho.) / Mira-se no açude. / (Pontos de
reticência.)
"Raio" se constitui praticamente noutro haicai:
Tudo é leque. / Irmão, abre os braços. / Deus é o centro.
"Laranja e Limão" demonstra outras constantes do poeta: uma certa obsessão cromática e o processo de jogar com duas palavras numa sequência de permutas posicionais, intercalando frases ou expressões:
Laranja e limão. / Pobre da menina / do mal amor! / Limão e laranja. / Pobre da menina / da menina branca! / Limão. / (Como brilhava / o sol) / Laranjas. / (Nas porcelanas / da água.)
"Réplica": outra miniatura poética, com outro exemplo da transferência imagem x som: tomadas cineverbais:
Um pássaro tão só / canta. / O ar multiplica. / Ouvimos por espelhos.
Em suma, " Pórtico", exhibit do complexo imagem-montagem-paisagem:
A água / toca seu tambor / de prata. / As árvores / Tecem o vento / e as rosas tingem-no / de perfume. / Uma aranha / imensa / torna a lua / em estrela.
Lorca da natureza viva, dinâmica, ainda vivo como instigação para se chegar ao mínimo múltiplo comum da poesia, entendê-la como linguagem, como informação de estruturas e, não, de "conteúdos" (esses, sempre abstratos).
Correio da Manhã
05/09/1968